COMISSÃO FUNDADORA 2006-2007


Dr. DÁRIO TEIXEIRA COTRIM
Dr. HAROLDO LÍVIO DE OLIVEIRA
Dr. LUIS RIBEIRO
Dr. WANDERLINO ARRUDA


DIRETORIA 2007- 2008

PRESIDENTE DE HONRA Dr. LUIZ DE PAULA FERREIRA
PRESIDENTE Dr. WANDERLINO ARRUDA
1º VICE - PRESIDENTE Dr. DÁRIO TEIXEIRA COTRIM
2º VICE - PRESIDENTE Dr. HAROLDO LÍVIO DE OLIVEIRA
DIRETORA EXECUTIVA Profa. MARTA VERONICA V. LEITE
DIRETOR-SECRETÁRIO Dr. PETRÔNIO BRAZ
DIRETOR-SECRETÁRIO ADJUNTO Coronel LÁZARO FRANCISCO SENA
DIRETOR DE FINANÇAS Prof. JUVENAL CALDEIRA DURÃES
DIRETOR DE FINANÇAS ADJUNTO Historiador HÉLIO DE MORAIS
DIRETORA DE PROTOCOLO Profa. REGINA Mª BARROCA PERES
DIRETORA CULTURAL Profa. RAQUEL VELOSO MENDONÇA
DIRETORA DE BIBLIOTECA Escritora AMELINA CHAVES
DIRETORA DE MUSEU Historiadora MILENA A. C. MAURÍCIO
DIRETOR DE RELAÇÕES PÚBLICAS Dr. ITAMAURY TELLES DE OLIVEIRA
DIRETORIA DE JORNALISMO Jornalista LUIZ RIBEIRO

CONSELHO CONSULTIVO

Dr. JOSÉ GERALDO DE FREITAS DRUMOND
Dr. WALDYR DE SENA BATISTA
Profa. YVONNE DE OLIVEIRA SILVEIRA

COMISSÃO DE GEOGRAFIA E ECOLOGIA

Prof. IVO DAS CHAGAS
Profa. ANETE MARÍLIA PEREIRA
Profa. MARIA APARECIDA COSTA


COMISSÃO DE HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA

Profa. MARTA VERÔNICA VASCONCELOS LEITE
Prof. CÉSAR HENRIQUE DE QUEIROZ PORTO
Profa. FELICIDADE PATROCÍNIO

COMISSÃO DE ANTROPOLOGIA, ETNOGRAFIA
E SOCIOLOGIA

Prof. GY REIS
Profa. CLÁUDIA REGINA ALMEIDA

COMISSÃO DE CLASSIFICAÇÃO E DE
ADMISSÃO DE SÓCIO
S

Jornalista MAGNOS DENNER MEDEIROS
Profa. MIRIAM CARVALHO
Dra. FELICIDADE VASCONCELOS TUPINAMBÁ
Profa. ZORAIDE GUERRA DAVID
Dr. WANDERLINO ARRUDA
Dr. DÁRIO TEIXEIRA COTRIM

COMISSÃO DA REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO
E GEOGRÁFICO

Dr. DÁRIO TEIXEIRA COTRIM - coordenador
Dr. ITAMAURY TELLES
Dr. PETRÔNIO BRAZ
Dr. WANDERLINO ARRUDA
Prof. JUVENAL CALDEIRA DURÃES
Profa. MARTA VERÔNICA VASCONCELOS LEITE
Jornalista LUIS CARLOS NOVAES


LISTA DE SÓCIOS EFETIVOS DO IHGMC

CD
Sócios
Patronos
01
Dr José Santos Rameta Alpheu Gonçalves de Quadros
02
Escritora Milene A. Coutinho Maurício Alfredo de Souza Coutinho
03
Padre Antônio Alvimar Souza Antônio Augusto Teixeira
04
Professora Claúdia Regina Almeida Antônio Augusto Veloso (Desemb.)
05
Profª Yvonne de Oliveira Silveira Antônio Ferreira de Oliveira
06
Prof Marcos Fábio Martins Oliveira Antônio Gonçalves Chaves
07
Professora Maria Aparecida Costa Antônio Gonçalves Figueira
08
Professora Anete Marilia Pereira Antônio Jorge
09
Professora Isabel Rebelo de Paula Antônio Lafetá Rebelo
10
Professora Maria Florinda Ramos Pina Antônio Loureiro Ramos
11
Jornalista Reginauro Rodrigues da Silva Ary Oliveira
12
Dr Antônio Augusto Pereira Moura Antônio Teixeira de Carvalho
13
Dr Cesar Henrique Queiroz Porto Ângelo Soares Neto
14
Professora Karla Celene Campos Arthur Jardim Castro Gomes
15
Jornalista Magnus Denner Medeiros Ataliba Machado
16
Dr Waldir de Senna Batista Athos Braga
17
Profa. Marta Verônica Vasconcelos Leite Auguste de Saint Hillaire
18
Dr Petrônio Braz Brasiliano Braz
19
Dr Luiz de Paula Ferreira Caio Mário Lafetá
20
Professora Felicidade Patrocínio Camilo Prates
21
Dr Reivaldo Simões de Souza Canela Cândido Canela
22
Professora Lygia dos Anjos Braga Carlos Gomes da Mota
23
Historiador Hélio de Morais Carlos José Versiani
24
Dr João Carlos Rodrigues Oliveira Celestino Soares da Cruz
25
VAGA Corbiniano R Aquino
26
VAGA Cyro dos Anjos
27
Professora Regina Maria Barroca Peres Dalva Dias de Paula
28
Escritora Amelina Chaves Darcy Ribeiro
29
Professora Filomena Luciene Cordeiro Demóstenes Rockert
30
VAGA Dona Tirbutina
31
Professora Clarice Sarmento Dulce Sarmento
32
Dr Edgar Antunes Pereira Edgar Martins Pereira
33
Dr Wanderlino Arruda Enéas Mineiro de Souza
34
Profa. Geralda Magela de Sena e Souza Eva Bárbara Teixeira de Carvalho
35
VAGA Ezequiel Pereira
36
Dra. Felicidade Vasconcelos Tupinambá Felicidade Perpétua Tupinambá
37
VAGA Francisco Barbosa Cursino
38
Professora Maria Inês Silveira Carlos Francisco Sá
39
Professor Ivo das Chagas Gentil Gonzaga
40
Drª Maria da Glória Caxito Mameluque Georgino Jorge de Souza
41
Dr Reinine Simões de Souza Geraldo Athayde
42
Professora Maria Luiza Silveira Teles Geraldo Tito da Silveira
43
Professor Benedito de Paula Said Godofredo Guedes
44
Hist. Roberto Carlos Morais Santiago Heloisa V. dos Anjos Sarmento
45
Jornalista Angelina de Oliveira Antunes Henrique Oliva Brasil
46
Professora Eliane Maria F Ribeiro Herbert de Souza – Betinho
47 Jornalista Paulo César Narciso Soares Hermenegildo Chaves
48 Professora Raquel Veloso de Mendonça Hermes Augusto de Paula
49 Dra. Maria Fernanda M. Brito Ramos Irmã Beata
50 Escritor Olyntho Alves da Silveira Jair Oliveira
51 Dr José Carlos Vale de Lima João Alencar Athayde
52 Profa. Maria Isabel M. F. Sobreira João Chaves
53 Dr João Carlos M. Sobreira de Carvalho João Batista de Paula
54 VAGA João José Alves
55 Cel. Lázaro Francisco Sena João Luiz de Almeida
56 Escritor João Aroldo Pereira João Luiz Lafetá
57 Jornalista Luiz Carlos Novaes João Novaes Avelins
58 Professor Necésio de Morais João Souto
59 Jornalista Luiz Ribeiro dos Santos João Vale Maurício
60 VAGA Jorge Tadeu Guimarães
61 Jornalista Girleno Alencar Soares José Alves de Macedo
62 Profº José Geraldo de Freitas Drumond José Esteves Rodrigues
63 Historiador Pedro de Oliveira José Gomes Machado
64 Professora Palmyra Santos Oliveira José Gomes de Oliveira
65 Dra. Maria de Lourdes Chaves José Gonçalves de Ulhôa
66 Arqueólogo Fabiano Lopes de Paula José Lopes de Carvalho
67 Dr Elias Siuffi José Monteiro Fonseca
68 Professora Rejane Meireles Amaral José Nunes Mourão
69 VAGA José (Juca) Rodrigues Prates Júnior
70 Jornalista Márcia Sá José Tomaz Oliveira
71 Dr João Caetano Canela Júlio César de Melo Franco
72 Jornalista Theodomiro Paulino Correa Lazinho Pimenta
73 Dra. Maria das Mercês Paixão Guedes Lilia Câmara
74 Professor Laurindo Mekie Pereira Luiz Milton Prates
75 VAGA Manoel Ambrósio
76 VAGA Manoel Esteves
77 Profª Maria Jacy de Oliveira Ribeiro Mário Ribeiro da Silveira
78 Jornalista Américo Martins Filho Mário Versiani Veloso
79 Professora Maria José Colares Moreira Mauro de Araújo Moreira
80 Jornalista Hélio Machado Miguel Braga
81 Prof. Juvenal Caldeira Durães Nathércio França
82 Dr Haroldo Lívio de Oliveira Nelson Viana
83 Historiador Paulo Costa Newton Caetano d’Angelis
84 Dr Itamaury Telles de Oliveira Newton Prates
85 VAGA Armênio Veloso
86 Professora Zoraide Guerra David Patrício Guerra
87 Profa. Marta Edith Sayago M Marques Pedro Martins de Sant’Anna
88 Professora Miriam Carvalho Plínio Ribeiro dos Santos
89 Jornalista Rosângela Silveira Robson Costa
90 Hostoriador José Henrique Brandão Romeu Barcelos Costa
91 Dr Wesley Caldeira Sebastião Sobreira Carvalho
92 Professor Roberto Pinto Fonseca Sebastião Tupinambá
93 Dr Dário Teixeira Cotrim Simeão Ribeiro Pires
94 Dr Luiz Pires Filho Teófilo Ribeiro Filho
95 VAGA Terezinha Vasquez
96 Professora Ruth Tupinambá Graça Tobias Leal Tupinambá
97 Professor Gy Reis Gomes Brito Urbino Vianna
98 Jornalista Rafael Freitas Reis Virgilio Abreu de Paula
99 VAGA Waldemar Versiani dos Anjos
100 Professora Maria Clara Lage Vieira Wan-dick Dumont

 

Sócios Correspondentes

Dr.André Kohene Caetité -BA
Prof. Regente Armênio Graça Filho Rio de Janeiro- RJ
Dr. Ático Vilas-Boas da Mota Macaúbas - BA
Dr. Augusto José Vieira Neto Belo Horizonte - MG
Dr. Avay Miranda Brasilia - DF
Jornalista Carlos Lindenberg Spínola Castro Belo Horizonte - MG
Escritora Carmem Netto Victória Belo Horizonte - MG
Dr. Enock Sacramento
São Paulo - SP
Dr. Fernando Antônio Xavier Brandão Belo Horizonte MG
Dr. Eustáquio Wagnar Guimarães Gomes Belo Horizonte - MG
Escritor Flávio Henrique Ferreira Pinto Belo Horizonte - MG
Jornalista Geraldo Henriques (Riky Tereze) New York - USA
Jornalista João Martins Guanambi - BA
Dr. Jorge Lasmar Belo Horizonte MG
Prof. José Eustáquio Machado Coelho Belo Horizonte MG
Prof. Dr. Jorge Ponciano Ribeiro Brasília - DF
Dr. Marco Aurélio Baggio Belo Horizonte MG
Profa. Dra. Maria da Consolação M. Figueiredo Cowen London - England
Jornalista Paulo César Oliveira Belo Horizonte - MG
Escritor Reynaldo Veloso Souto Belo Horizonte - MG
Prof.Thiago Carvalho Makiyama Gunma-Ken - Japão
Prof. Wellington Caldeira Gomes Belo Horizonte - MG
Historiador Zanoni Eustáquio Roque Neves
Belo Horizonte - MG

NOTAS DOS COORDENADORES DA EDIÇÃO

A ordem de publicação dos trabalhos dos Sócios Efetivos obedeceu à seqüência
alfabética dos nomes dos autores. Em seguida, foram ordenados os trabalhos
dos Sócios Correspondentes;

A Revista não se responsabiliza por conceitos e declarações expedidos em
artigos publicados;

A revisão dos disquetes originais foi feita pelos próprios autores dos artigos
publicados.


Homenagens


Cônego Adherbal Murta de Almeida

Historiador João Botelho Neto

EPITÁFIO

Para um túmulo de amigo

“A morte vem de manso, em dia incerto
e fecha os olhos dos que têm mais sono...”.

(Alphonsus de Guimaraens – ossa mea, I.)

 

FINS DO IHGMC

Art. 2º - O IHGMC tem como finalidade a promoção de estudos e a difusão de conhecimentos de história, geografia e ciências afins, do município de Montes Claros e da região Norte de Minas, assim como o fomento da cultura, a defesa e a conservação do patrimônio histórico, artístico e cultural.


APRESENTAÇÃO DA REVISTA DO IHGMC

No trânsito da vida, a paciência é o passaporte susceptível de assegurar-nos a livre passagem pelos acertos e realizações, assim como pelos problemas e dificuldades. Tudo depende do como concentrarnos no que há de melhor em tudo e em todos, do como buscar o entusiasmo e a noção de dever ante à comunidade e a história. Pequeno mundo dentro de um grande universo, temos certeza de que existindo paz, harmonia, amor e compreensão, refletiremos tudo de possível e até de impossível para o mundo à nossa volta. Agentes do pensamento, da paixão e dos sonhos, somos conscientes de que a vida não passa de um instante ou de alguns instantes em que empreendemos e realizamos coisas eternas.

Mais do que de máquinas, mais do que de inteligência, de afeição e doçura, precisamos de humanidade, virtude maior para iluminar o mundo e a vida. Precisamos nos lembrar sempre de que a criatura humana é inteligência em transformação incessante, ser interexistente da matéria e do espírito, sempre a navegar pelo real e pelo imaginário, por registros ou pela utopia, estes territórios sagrados do escrever e do imaginar. Vale aqui lembrar as palavras do imortal poeta William Shakespeare: "O tempo é muito lento para os que esperam, muito rápido para os que têm medo, muito longo para os que lamentam, muito curto para os que festejam. Mas, para os que amam, o tempo é eternidade... " Vale valermo-nos também das idéias do supra- Camões, Fernando Pessoa: "O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.”

Ao entregarmos aos nossos companheiros de Instituto e ao público esta segunda Revista do IHGMC, desejamos dizer também que chegamos com a determinação de marcar a História no espaço e a Geografia no tempo, aprendizagem-ensino, registro definitivo ou ensaio, dependente ou independentemente de quem o faça, qualquer que seja a idade, o conhecimento e a experiência. Quadro social já com 87 participantes, é até agora o melhor que pôde ser arregimentado, desde 26 de dezembro de 2006, data da fundação. Nada de paradas, nada de indecisões, pois já estamos vivamente empenhados na publicação, em outubro, do número três, a Revista do Centenário de Godofredo Guedes, e, em dezembro, do número quatro, para assinalar o nosso segundo aniversário. Sempre trabalho e realização de muito amor.

Importante destacar a participação de muitos autores e o esforço incontido do nosso Vice-presidente Dário Teixeira Cotrim, coordenador em todas as horas desta Revista, da arrecadação dos textos até a feitura gráfica, inclusive com passagens pela digitação e pela revisão. O trabalho do mestre Cotrim, meu padrinho e companheiro também no Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, é e continuará sendo importantíssimo para a vida do IHGMC, assim como tem sido na Academia Montesclarense de Letras e na imprensa de Montes Claros.

Aos companheiros, a todos os amigos que nos prestigiam, considerando-se muito o apoio do prefeito de Montes Claros, dr. Athos Avelino Pereira, ao nosso lado desde os primeiros momentos, nossos mais sinceros agradecimentos.

Importante marcar afirmação com sábias palavras do maior de todos os poetas da raça brasileira, Carlos Drummond de Andrade: "A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade.”

Montes Claros(MG), julho de 2008
Wanderlino Arruda
Presidente


COLONIZAÇÃO DA JAÍBA

Antônio Augusto Velloso

Artigo extraído da Revista do “Archivo Público Mineiro" de Direção e Redação de Augusto de Lima - Ano VI, Fascículo I - Janeiro a Março de 1901, editada em Belo Horizonte, na Imprensa Oficial de Minas Gerais.

Houve um tempo, ainda não remoto, em que demais falouse acerca de imigração e colonização em Minas.

Então fazia-se pela imprensa ativa propaganda da abolição do cativeiro, resquício de barbaria subsistente nas instituições do país.

E a idéia vitoriosa conquistava dia a dia novos adeptos, convictos uns, outros vencidos pela força irresistível da evolução.

Esta, porém, apenas antecipada pelo espírito revolucionário, despertando o sentimento da humanidade inato ao povo brasileiro, operou-se alguns anos antes da época em que necessariamente havia de realizar-se.

Extinta, de fato, estaria a escravidão no Brasil, dentro de um período relativamente limitado, estancadas as fontes do poder dominical pelas leis que proibiram o tráfico e declararam livres os denominados ingênuos, estas salutares providências tinham sido acompanhadas de outras, igualmente eficazes, como a criação do fundo de emancipação, a garantia de favoresconcedidos à liberdade e a animação das manumissões, por diversos modos.

Mais tarde a libertação dos sexagenários viera completar aquelas sábias medidas, já suficientes para fazerem desaparecer, da única d'entre todas as nações cultas, que ainda a mantinha, uma tal aberração das leis naturais, que nem ao menos era positivamente reconhecida pela pátria legislação, o que bem exprimia o velho jurisconsulto português, escrevendo que "servi nigre in Brazilia tolerantur, sed quo jure et titulo me penitus agnorare fateor".

Era, pois, infalível a supressão de semelhante propriedade anormal, repugnante aos princípios da moral e do Direito natural, e incompatível com a civilização moderna.

Entretanto a solução do problema do chamado elemento servil devia efetuar-se talvez passadas mais algumas dezenas de anos, e foi contra esta dilação que se suscitou o movimento precipite e tenaz que, depois de vários sucessos, em pouco e muito antes que se esperasse, terminou pela memorável lei da abolição, decretada em 1888.

Por esse tempo foi quando mais tratou-se do assunto de imigração e colonização, no pensamento de substituir se por estrangeiros os braços libertados, tornando-se menos sensível o abalo por que se pressupunha terem de passar a lavoura e outras indústrias do país, com a transformação do trabalho, mormente nos grandes estabelecimentos agrícolas.

Mas parecia que não se cogitava de modo algum da colocação desses milhares de brasileiros, novamente admitidos à comunhão social, nem da coerção de tantos indivíduos validos a adotarem uma profissão lícita, fiando-se de certo somente nas disposições penais repressivas da ociosidade, nunca executadas com a imparcialidade e rigor imprescindíveis, por motivos assaz notórios.

Já no ano anterior, a assembléia legislativa provincial havia decretado, entre gerais aplausos e manifestações de entusiasmo, uma lei autorizando o governo a auxiliar o serviço de imigração e colonização na província, mediante a indenização das despesas de passagem dos imigrantes de determinadas procedências, com a criação de núcleos coloniais nas zonas de estrada de ferro e nas margens do Rio das Velhas, com a fundação da hospedaria de imigrantes em Juiz de Fora e outros favores.

Era tudo quanto se podia então fazer, no regime de centralização que vigorava, e ainda assim muito menos do que se havia feito em São Paulo, no Paraná, em Santa Catarina e noutras províncias, como apresto para atenuar o choque de transição.

Proclamada, porém, a república federativa, estatuiu-se no art. 64 da Constituição que pertencem aos Estados as terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, a respeito de cujo direito, em conseqüência, teve o Congresso Mineiro de legislar como dispõem as leis n. 27, de 25 de julho de 1829, n. 173, de 4 de setembro de 1796, e n. 263, de 21 de agosto de 1899.

A primeira desta e o vigente regulamento nº 1.351, de 11 de janeiro de 1900, definem quais as terras devolutas do Estado, entre as quais se compreendem as que não se acham no domínio particular por título legítimo e as que não foram adquiridas por posse ou concessões, competentemente legitimadas, confirmadas ou revalidadas.

De iguais terras, pois, tem o governo do Estado a faculdade de dispor como possa melhor convir ao bem público, a que de certo nada mais importa que proporcionar à numerosa classe dos proletários, consideravelmente multiplicada pela lei da libertação total, os meios de prover à própria subsistência, por uma ocupação honesta.

Para semelhante, patriótica e meritória obra de regeneração dos costumes pelo trabalho livre, sempre se me afigurou medida eficacíssima a concessão gratuita de lotes de terras devolutas em certas condições aos indivíduos desfavorecidos e capazes de se dedicarem à agricultura como os redimidos por lei, fundando-se com este fim colônias de preferência destinadas a nacionais.

Deste modo, ainda mais legitimar-se-iam toda energia e severidade na repressão da vadiagem, sem tantas vezes coagir-se não poucos infelizes a sujeitarem-se a uma nova servidão para escapar à privação da liberdade imposta por sentença.

Assim tem, atualmente, melhor oportunidade, ao que parece a reprovação de uma desalinhada notícia, publicada há alguns anos, em periódico sertanejo, sobre um trecho desconhecido do norte de Minas, a propósito da conveniência, das vantagens, senão da necessidade da fundação de colônias de nacionais de aludida origem, o que se procurou demonstrar, naquela predestinada região mineira.

Certamente a descrição corográfica de qualquer parcela do território do Estado amolda-se ao programa desta Revista, conforme foi traçado na lei da criação do Arquivo e respectivos regulamentos; e é por isso que, atendendo de bom grado ao convite honroso do ilustrado Doutor Diretor e Distinto Redator desta importante publicação, acabo de rever e refundir o que outrora havia esboçado, concernente a um recanto quase inabitado, que imaginei pudesse vir algum dia a ser um próspero e rico município, qual uma pequena Libéria nos confins de Minas, para mais uma vez colaborar, e ora com o presente modesto e singelo trabalho, neste precioso repositório de tantas produções superiores.

Talvez que para o futuro, transformando-se em realidade uma utopia de então como de hoje, o Estado de Minas conta novos e florescentes distritos, constituindo uma nova circunscrição administrativa, nas terras denominadas de Jaíba.

Situada no vale do rio Verde Grande, a parte de território norte-mineiro por esse nome conhecida estende-se desde a foz do Ribeirão do Ouro até a margem esquerda do Rio Verde Pequeno e, além da confluência desta até a serra de São Felipe, limite entre o antigo distrito de Morrinhos do município de Januária e o de Santo Antônio da Boa Vista no município de Contendas.

Lugares ainda muito pouco explorados ou inteiramente desconhecidos, não se pode determinar, nem ao menos aproximadamente, o espaço que compreendem aqueles ermos baixos e vazantes cobertas de florestas imensas, matos virgens em toda acepção, nem aquelas amplas chapadas, carrascos e tabuleiro agrestes, cuja monótona uniformidade é apenas interrompida, de longe a longe, pelas raras veredas, capões de pindaíba isolados, e esplêndidos buritizais que comumente abrigam à sombra límpidos mananciais e olhos d'água.

Entretanto calcula-se em mais de trinta léguas a distância de sul a norte e, em pouco mais ou menos igual, a de leste a oeste dessa extensa superfície de terras, ao que se presume devolutas, as quais se dilatam pelos município de Contendas, Grão Mogol e Boa Vista e, neste último, tocam a fronteira do Estado com o da Bahia, conforme foi fixada pela ordem régia de 16 de março de 1720.

Ali, as terras de cultura para cereais, cana de açúcar, mandiocas, trigo, algodão, fumo não podem deixar de ser pelo menos tão férteis como todas as do feracíssimo vale do Rio Verde, cuja prodigiosa uberdade é já bastante conhecida, por serem lavradas, há longos anos, desde as nascentes do mesmo rio, no município de Bocaiúva, e, na maior extensão, no de Montes Claros.

Ali também os vastos campos, cerrados e caatingas mais afastados das margens do rio Verde, e por onde correm permanentes córregos e pequenos ribeiros, afluentes daquele, oferecem excelentes pastagens nativas, capazes de nutrir muitos milhares de rezes e próprios para toda espécie de criação.

Finalmente, conquanto não tenham sido ainda explorados aqueles sítios, apenas raramente percorridos pelosmais destemidos caçadores e vaqueiros extraviados, devem provavelmente deparar-se cômodas e aprazíveis situações para estabelecimentos rurais naquelas paragens, onde à agricultura e à indústria pastoril poderão juntar-se outras acessórias, como as extrativas, o curtume, o fabrico do fumo, a pesca e a caça.

Efetivamente, madeiras de construção e de marcenaria de todas as qualidades mais apreciadas e das maiores dimensões, tais como produzirão árvores colossais, duas e mais vezes seculares, poderão ser dali facilmente transportadas em simples balsas pelo rio Verde Grande, navegável, como se sabe e nota o moderno mapa de Minas de Chrocksatt de Sá, até a foz do rio Verde Pequeno, e mesmo deste ponto acima, por ajoujos e canoas, até portos mais próximos de Montes Claros, no município desta comarca.

As grandes serras por ali disseminadas, como as de toda a região, contêm, segundo todas as possibilidades, muitas lapas em que se acham ricas jazidas de salitre, ainda intactas.

A mangabeira, de que se extrai a borracha, que tanta aceitação tem encontrado nos mercados do país e que há muitos anos constitui um dos artigos de maior exploração do norte do Estado, deve ser abundantíssima em toda a vastidão dos tabuleiros inexplorados daquele trecho de Minas.

É assim que a palha do buriti, de longas fibras flexíveis, macias, claras, e que até agora somente são utilizadas para cordas mui resistentes, chapéus e confortáveis redes, poderá ser com vantagem empregada para vários outros artefatos, como para substituir a palhinha comum nos móveis de assentos.

A caça de todos os gêneros poderá igualmente ser, durante longos anos, em tais estâncias, uma ocupação rendosa pelo comércio das peles mais estimadas, como são as da ariranha, da lontra, da anta, de diferentes variedades de onças e veados, não se falando na infinidade de aves e pássaros de saborosa e delicada carne.

Abelhas de diversas espécies, que fabricam delicioso mel e quantidade de cera, útil para tantos fins, no tronco das árvores, nas frinchas das rochas e até no próprio solo, donde se extraem com mínimo custo, proporcionarão mais um elemento de vida fácil, uma agradável diversão e regalo para todas as classes.

No Rio Verde e seus afluentes, é admirável a abundância de peixe, que em vários pontos apanham-se nos grandes parís e jequís, e cuja quantidade será suficiente para abastecer as populações inteiras e formar carregamentos para exportação, desde que a pesca seja ali uma indústria.

De quantas frutas silvestres alimentícias, cocos e palmitos carregam-se anualmente as árvores e palmeiras tirarão proveito os povoadores daquelas terras, que outros tantos recursos hão de encontrar, nos primeiros tempos da colonização, que far-lhes-hão até esquecer a agitação da luta pela vida, cada dia mais penosa nos centros já adiantados.

Mas nem terão de ficar segregados das cidades e das outras povoações, pois o São Francisco é regularmente sulcado por navios a vapor e as comunicações com este podem se estabelecer facilmente, pelo rio Verde, por meio de canoas e ajoujos.

Abri-se-ão também logo boas estradas para as cidades vizinhas, para Januária, Montes Claros e outros empórios de comércio daquela zona com as praças do Rio de Janeiro e da Bahia.

Entretanto, jazem completamente incultas e quase desertas as terras designadas pela denominação genérica de Jaíba, as quais presume-se com razão que sejam devolutas e
portanto do domínio do Estado; porquanto nenhum proprietário, que conste, as possue e nem menos arroga-se alguém direito à propriedade das mesmas.

Apenas reza uma vaga tradição que pelos anos de 1770 a 1771 vieram para o Brasil três portugueses irmãos , que se passaram para a Capitania de Minas, estacionando no arraial velho de Sabará, onde um deles ficou, aí casando-se depois, e os outros seguiram a vida aventureira dos primeiros colonos em busca de ouro.

Destes, dirigiu-se o mais velho para as minas do Rio das Mortes, onde parece que fixou-se mais tarde, constituindo família, na vila de São José, hoje a cidade de Tiradentes; e o terceiro que era mais moço e talvez o mais intrépido e ambicioso, internou-se com alguns companheiros para o norte da capitania, à cata de minas, indo afinal ter à povoação de Morrinhos na margem direita do São Francisco e pouco acima da confluência do Rio Verde.

Aí tiveram esses arrojados sertanistas o roteiro de uma lagoa, sita nas imediações da barra do rio Verde Pequeno, e na qual havia imensas riquezas.

Partindo logo para esse outro eldorado, munido de armas e provisões, e guiados por um velho índio manso, após várias peripécias, através de brenhas inóspitas, chegaram a reconhecer a existência da riquíssima lagoa, em cujas bordas o ouro resplandecia a descoberto por toda parte.

Mas quando acampavam e dispunham-se a recolher quanto pudesse carregar do cobiçado metal, foram de improviso atacados por uma avultada horda de bugres, com os quais tiveram de sustentar luta renhida, caindo mortos quase todos os da pequena companhia.

Somente o chefe e um companheiro conseguiram escapar, voltando ao arraial de Sabará, onde contaram o prodigioso descobrimento que haviam feito naqueles sertões
longínquos.

Aconselhado por pessoas do lugar, "bem pacatas", como diz um manuscrito da época, que tenho à vista, o descobridor tratou de requerer carta de sesmaria das terras onde encontrara tamanha riqueza; mas antes que a obtivesse, veio a falecer em conseqüência das febres malignas ou malinas, como então designavam as intermitentes sezões que tinha apanhado na expedição.

Ignora-se, porém, se foi concedido ou não a sesmaria requerida; e nem consta que jamais os irmãos do peticionário, que foram troncos de numerosas famílias, dispersas pelos municípios do norte e por outros do Estado, nem seus descendentes procurassem averiguar semelhante negócio, o que já seria todo extemporâneo.

É porque a Jaíba é, quase em toda a extensão da área que compreende, inabitada, pois somente os contornos que avizinham com as povoações adjacentes são ocupados por uma gente que se descreve como semi-selvagem, vivendo num estado pouco menos do primitivo, de natureza, em meia nudez, sustentando-se principalmente de caças, pesca, palmitos, e frutas silvestres.

Na alimentação ordinária desse povo excepcional entra freqüentemente uma esquisita iguaria, preparada de carne de veado e depois reduzida a fino pó, a que juntam mel de abelha jataí, formando uma espessa massa pastosa, que aromatizam com certas folhas escolhidas. Dizem que é um manjar que sabe mesmo muito bem a qualquer paladar e pode conservar por muito tempo. Mais fácil é avaliar as propriedades irritantes e cáusticas de semelhante substância, a que dão o nome de indígena de curumim.

É um fato singular esse regresso do homem civilizado à vida selvagem, em certas condições mesológicas porém digno de observação e certificado pelos antropologistas e etimólogos, ao que afirmam Darwin e outros, explicando-o pela tendência natural do indivíduo para os caracteres dos antepassados.

E nem só nos habitantes da Jaíba nota-se um tal fenômeno de reversão, que dizem apresentarem também os célebres Serranos das Araras e a população de outros pontos da vastíssima região mineira, chamada Vão do Urucuia, confinando com Goiás, à margem esquerda do São Francisco.

Apenas os maiores dessa espécie de tribos, composta na totalidade de pretos e mestiços, que são propriamente nômades, mas não tem habitações regulares, cultivam a mandioca, de que fazem farinha para o próprio consumo, abóboras, melancias e plantas tuberosas, criam algum gado vacum, cavalar e suíno.

Da vida civilizada muito pouco sabem, e só algumas leves e confusas noções têm de religião, alterada por práticas grosseiras e supersticiosas.

De tempos a tempos os Reverendos Párocos da Boa Vista, Januária, Gorutuba e outros sacerdotes tocam aos lugares mais povoados da Jaíba, aonde vão à desobriga dos moradores, que para ali concorrem aos atos religiosos, batizando-os e casando-os; ali tem havido exemplos de receberem o batismo adulto, homens e mulheres maiores de vinte, trinta e mais anos.

Alguns, porém, vivem mais para o interior das terras e nenhum sacramento jamais recebem, segundo supõe-se.

Mas os jaibanos mantêm, contudo, relações comerciais com os que lá penetram, pelos sítios onde eles vivem nas suas malocas: compram, vendem, ou trocam pelas mercadorias que lhe levam, couro, salitre e outros artigos, fazendo raro uso da moeda em suas transações.

No entanto riquezas, talvez incalculáveis encerram aqueles matos virgens imensos, aquelas intermináveis vargens e campinas em cujo âmbito se presume estar situada a formosa lagoa que a crença popular denominou - lagoa dourada.

Fábula ou verdade, ela tem sido já por diversas pessoas avistada, depois do descobrimento feito pelos primeiros exploradores, a que neste escrito me referi.

Caçadores errantes e desviados campeadores que a viram deslumbrados asseveram que as areias daquele maravilhoso lago de cerca de um quarto de légua de circunferência, são de puro ouro, que as águas repousam sobre um fundo de ouro. É, não obstante, vulgar que todos os povos em todas as regiões sempre imaginaram uma dessas assombrosas riquezas ocultas, e que nunca se descobre; donde é de crer que a lagoa dourada da Jaíba se explica apenas pela existência do precioso metal em proporções mais ou menos ordinárias, num qualquer daqueles lugares.

Esta era também a opinião de um reverendo Padre, homem assaz instruído e observador inteligente, que por ali teve que andar mais de uma vez no exercício do seu sagrado ministério, e por quem me foram, há alguns anos, fornecidas, em grande parte, as informações que serviram para esta ligeira e tosca descrição.

Mas como quer que seja e abstraindo-se de mais este, as terras da Jaíba oferecem todos os elementos para a fundação de uma ou de diversas promissoras colônias, cuja idéia, se ocorrer aos poderes públicos e for promovida à realidade, há de trazer um importante melhoramento para o Estado, pelo maior desenvolvimento da lavoura, pelo invento de novas indústrias, pelo incremento do comércio fluvial do São Francisco e pelo conseqüente aumento das rendas.

Talvez se objete que naquela zona são todos os lugares insalubres, onde grassam febres epidêmicas; porém não são mais do que as ciladas ribeirinhas de São Francisco, onde florescem e prosperam muitas povoações e cidades, debelando-se sem dificuldade a moléstia no tempo da epidemia, cujo aparecimento mesmo tem se conseguido prevenir ou pelo menos minorar.

Mandando, portanto, o governo verificar se, como se acredita, efetivamente são devolutas as terras, ainda que se limitem às primeiras providências ao processo de tombamento, medição, demarcação e divisão das mesmas em lotes, e sujeitando-as no regime comum das demais do domínio do Estado, estarão dispostos os meios e lançados os fundamentos para a futura colonização da Jaíba.

Ouro Preto, 15 de agosto de 1901.
Antônio Augusto Velloso.


DOCUMENTO HISTÓRICO

Peça oratória do Dr. João Antônio Pimenta de Carvalho por ocasião da
grande manifestação popular de apoio ao Dr. Plínio Ribeiro a uma vaga
na Câmara Federal.
(Documento do arquivo particular de Dário Teixeira Cotrim)


AS LENDAS DE ITACAMBIRA

Amelina Chaves
Cadeira N. 28
Patrono: Darcy Ribeiro

“Verdes sonhos! É a jornada ao pais da loucura.
Quantas bandeiras já, pela mesma aventura...
Levada, em tropel, na ânsia de enriquecer.
Em cada tremedal, em escarpa, em cada brenha rude.
O luar beija á noite uma ossada,
Que vem a uivar de fome, as onças a remexer...
Sete anos, de fio em fio destramando o mistério,
Passo passo em passo, penetrando.”
(“Caçador de Esmeraldas”. Olavo Bilac)

 

"E os olhos dos descobridores da terra brasileira não pouparam o cenário ermo. Na paisagem magnífica habitavam raças num estágio rudimentar, outras porém, já alcançando, ou talvez conservando hábitos mais aproximados da nossa civilização.

Entre os indígenas havia excelentes canoeiros e habilidosos flechadores, assombrosos na precisão dos seus arremessos, não se livrando das certeiras setas “nem o gavião no alto pairando, nem o pequenino pássaro voando”. Para atingir o inimigo, ou a caça distante atirava por elevação, descendo a flecha exatamente no ponto visado.

O espírito de vingança entre eles era cultuado com a verdadeira fé. Mesmo os que não fossem antropófagos tinham o prazer imenso em comer a carne dos seus inimigos, vingando-se das ofensas feitas à tribo...”.

(Brasiliano Braz... Livro, Pelos Caminhos do São Francisco)

 

Dentro deste mundo mágico dos primeiros donos das terras chamadas mais tarde de Brasil, já povoadas também pelos deuses e gênios imaginários, eles já possuíam crenças, lendas e mitos para desvendar os mistérios e dar definições de todos os fenômenos da natureza. Assim, criavam um universo cultural próprio, onde os espíritos da mata e os gênios do rio adormecem e levantam com eles, sempre regendo o destino da tribo.

Era comum, em noite de lua clara, o velho pajé, reunir sua gente junto aos desbravadores, para contar a história do seu povo.

Postava de cócoras em volta de uma grande fogueira e com voz soturna e pausada falava aos presentes, homens, mulheres e crianças, que ouviam atentos, aguçados pela curiosidade: - “Contavam os meus antepassados, que viviam nestes confins esquecidos... Aqui existia uma serra diferente de todas as outras, era de uma beleza sem igual, era toda verde resplandecente e brilhava até mesmo nas noites de escuridão, iluminado tudo em sua volta. Diziam os mais velhos que sua cor verde e o brilho que emanava vinham das pedras verdes chamadas esmeraldas”. Essa serra das mil e uma noites ficava à margem de uma misteriosa lagoa chamada pelos antigos moradores de – Lagoa Vapabucu. Todos da tribo, do menor ao mais idoso, sabiam que as pedras que cobriam a serra eram os longos cabelos de IARA a mãe d'água, uma linda sereia que enfeitiçava todos os homens.

A serra era sagrada para eles. Intocável pela mão humana, porque era a morada da belíssima sereia. Lá ela dormia e não podia ser acordada. Ninguém podia tocar nas pedras verdes. Para arrancá-las teria que acordar e, mesmo dormindo, ela velava pela aldeia, protegendo-a de todos os males. Acordá-la seria a morte. Sua presença também enchia tudo de beleza.

Aconteceu que numa noite escura, o silêncio foi cortado pelo ruído de muitos pés. Os membros da tribo se entreolharam assustados, quando ouviam também, trazidas pelo vento, vozes estranhas e incompreensíveis para eles. Com os olhos arregalados eles viram as trilhas e clareiras serem invadidas por um grupo de homens desconhecidos sob o comando de um senhor mais velho, que, decidido, pisava no cascalho com segurança. Calçava as longas e pesadas botas de couro, protegendo a cabeça um grande chapéu de abas largas e cingindo a cintura um largo cinturão de balas. No rosto sério, um olhar percrustador de quem busca todos os segredos da mata. A espessa barba, já grisalha, dava-lhe um ar de austeridade... Assim foi a chegada do bandeirante Fernão Dias Paes no sertão de Itacambira, conforme um velho índio nos contava.

Só que os bandeirantes vinham de terras distantes, possuíam uma cultura diversa, sem conhecimento do folclore em que baseavam os moradores. Eram descrentes das lendas e mitos contados pelo velho pajé. Os bandeirantes intrépidos e predestinados estavam surdos e cegos aos temores dos habitantes da terra. Dominados pela cobiça, avançaram para a serra dos sonhos com sofreguidão. Com mãos firmes empunharam as
ferramentas e golpearam a serra sagrada arrancando punhados de pedras verdes “ QUE PARA OS PRIMITIVOS ERAM MECHAS DOS CABELOS DE IARA, A MÃE-D ÁGUA “

Em vão tentaram convencer o grande desbravador de que seu gesto impensado iria trazer desgraça para si e toda a região, fato em que ele não acreditava. Porém os males previstos pelos bugres recaíram sobre o corajoso bandeirante. Poucos meses depois, o castigo não se fez esperar. Foi vitimado por uma violenta febre, desta que é chamada popularmente “de pelar macaco”. Seu corpo era tomado por constantes tremores, e sua mente possuída por fantasmas, passando a viver um pavoroso clima de delírio. A febre devorava seu corpo e lentamente foi definhando. Fernão Dias Paes jazia num catre improvisado e sem forças, agonizava.

Os índios, ao verem a cena, aglomeravam-se pelos cantos dos casebres, medrosos, olhares assustados, comentavam entre si: Febre? Não. Castigo... Para quem tentou roubar o sono, ou a vida de uiara, ela não perdoou o gesto de arrancar punhados dos seus cabelos.

Desgrenhado, enlouquecido, Fernão Dias Paes, na beira de um grande rio, passava as noite gritando pelas sonhadas esmeraldas.

Em delírio, via entre os dedos trêmulos longas mechas de cabelos verdes. Fernão Dias morreu e os índios dançaram e cantaram alegremente, porque uiara, a mãe-dágua, vencera... E os gênios da mata dormiram em paz.

Para os bugres, mais uma vez venceram as suas crenças. O castigo era certo para quem tentasse acordar a sereia de cabelos verdes. Para o poeta, as lendas viram poesia e a alma se solta em grandiosos versos.

Fernão Dias agonizava... Um lamento,
Choro longo, a rolar na longa voz do vento.
Mugem soturnamente as águas, o céu arde.
Transmonte fulvo o sol, e a natureza assiste.
Na solidão, na mesma hora triste.
A agonia do herói e à agonia da tarde.
Piam perto, na sombra, as aves agoureiras.
Silvam as cobras, longe as feras carniceiras
Uivam nas lapas. Desce a noite como um véu...
Pálido, no palor da luz, o sertanejo
Estorce-se no credo o derradeiro arquejo.
Fernão Dias Paes agoniza e olha o céu.

(O Caçador de Esmeralda... Olavo Bilac)


MONTES CLAROS SOB OS OLHOS DA ARQUITETURA –
INSERÇÃO DA OBRA DE ANTÔNIO AUGUSTO
BARBOSA MOURA

Antônio Augusto Pereira Moura
Cadeira N.12
Patrono: Antônio Teixeira de Carvalho

A formação da cidade de Montes Claros se assemelha àquela formação tradicional das cidades coloniais brasileiras, onde as famílias de melhor poder aquisitivo constroem seus sobrados e casarões nos arredores da igreja na praça principal. Com o crescimento do comércio e o desenvolvimento, são abertas novas ruas e acessos numa malha reticulada bastante tradicional. A expansão da cidade fez com que a área de comércio central fosse se ampliando, desta forma as antigas residências localizadas nestas áreas passaram a ser utilizadas para o comércio e as áreas residenciais foram se afastando do centro, para as chácaras no entorno. O processo de urbanização pelo
qual a cidade passa é semelhante às demais cidades médias brasileiras, onde praticamente toda a população encontra-se vivendo nas cidades.

A cidade tem sua origem atrelada à ação das bandeiras paulistas, por Antônio Gonçalves Figueira que, em busca do ouro, no século XVIII, formou três fazendas na região e uma delas, à margem do Rio Verde, de nome Montes Claros. O desenvolvimento desta fazenda e abertura de estradas para expandir o comércio de gado deu origem ao Arraial das Formigas,que foi crescendo e prosperando na região. Primeiro, arraial das Formigas, depois Arraial de Nossa Senhora da Conceição e São José de Formigas, Vila de Montes Claros de Formigas e por fim cidade de Montes Claros. Iniciou-se assim, em local diferente da sede de Antônio Gonçalves Figueira, em torno da Capela erguida por José Lopes de Carvalho. A emancipação política ocorreu em 13 de outubro de 1831, quando a cidade contava com pouco mais de 2000 habitantes.


Figura 01 - Matriz de Nossa Senhora da Conceição e São José – Foto do autor

____________________________________________
16 - Mineiro de Montes Claros é Arquiteto Urbanista, formado pela UFMG em 1997 e Mestre em
Geografia (Tratamento da Informação Espacial) pela PUC-MINAS em 2002. É Professor
Universitário desde 1998 e Coordenador do Curso de Arquitetura e Urbanismo das Faculdades
Santo Agostinho.
17 - Ver Amorim Filho (1984) sobre cidades médias.

Montes Claros, segundo Anete Pereira (2003) desde o início do século passado, já era conhecida como a capital do sertão mineiro.

Quanto à arquitetura, Montes Claros apresenta um fenômeno bastante curioso: uma ornamentação autóctone de uma cidade isolada que se cristalizou em um estilo local. Frisos, cunhais, pilastras com capitéis trabalhados em relevo lembram por vezes o romântico, mas no geral fogem de qualquer influência tradicional ou barroca, sendo de forma, composição e execução primárias ou bárbaras.

De modo geral, a arquitetura religiosa em Minas apresentou algumas peculiaridades. A ausência de congregações que se responsabilizassem pelas unidades religiosas transferiu para o povo a concretização de uma arquitetura de grande vulto. Em Montes Claros, a correspondência entre a arquitetura religiosa e o organismo social são bem evidentes na Matriz de Nossa Senhora da Conceição e São José (antiga capela erguida por Lopes de Carvalho) (Figura 01). Esta, como dito anteriormente, foi
iniciativa de um único indivíduo que se uniu a outros para a afirmação da povoação nascente e ponto de referência.

A arquitetura residencial já se caracterizou por acompanhar as necessidades da época e do lugar.

O Palácio Episcopal, (Figura 2) datado do final do séc. XIX juntamente com o Casarão dos Oliveira (Figura 3) apresentam algumas características semelhantes. Os altos pés direitos permitem aproximar em equivalência a altura e a largura dos edifícios; cimalhas emolduradas, soco, barras salientes e faixas divisórias de andares horizontais contrariam o verticalismo presente nos vãos, altas portadas e pilastras. Essa equivalência dá ao conjunto uma solidez estática, pesado num prenúncio ao neoclassicismo.


Figura 02 - Palácio Episcopal – foto do autor


Figura 03 - Casarão dos Oliveira – foto do autor

Destacam-se ainda as janelas rasgadas por inteiro, providas de sacadas (o casarão) ou parapeitos entalados com balaústres (no palácio) multiplicando o verticalismo da construção.

O sobrado, datado de 1920 a 1930 (figura 04) ilustra as novas soluções que aparecem durante o século XIX. A construção se afasta do alinhamento da via pública e o volume começa a se movimentar perdendo o caráter robusto e estático. Os ornamentos se diferenciam e os vãos são coroados de formas diversas.


Figura 04 - Sobrado – Praça Dr. Chaves - foto do autor


Figura 05 - Residência – Esquina Rua D.Pedro II – Rua Camilo Prates - foto do autor

Já no último exemplo do final da década de 1950 da esquina da Rua D.Pedro II, (figura 05) destacam-se alguns elementos importantes. As colunas são elementos ecorativos.
Aparecem também cobogós e brises e os jardins passam a receber um tratamento formal, protegidos do exterior por grades e portões de ferro.

Enfim, cria-se uma arquitetura variada, misturando estilos e tendências, mas bastante característica do lugar. É iniciada a abertura de espaço para o modernismo na arquitetura adentrar na cidade com os novos arquitetos recém formados na capital, que voltam para o interior e procuram colocar em prática as tendências modernistas tão discutidas na academia e já experimentadas nos grandes centros.

Para descrever um pouco do modernismo da Arquitetura em Montes Claros, optou-se por pesquisar a obra do Arquiteto Antônio Augusto Barbosa Moura.

A Arquitetura desenvolvida em Montes Claros e região por Antônio Augusto Barbosa Moura já se tornou parte integrante da história. Ele contribuiu de forma definitiva para a afirmação de uma produção de cunho moderno na cidade de Montes Claros e nos seus arredores no interior do Norte de Minas.

O arquiteto apresenta em seus projetos novos conceitos e formas ainda pouco exploradas na região e consegue aliar uma nova linguagem e um novo repertório de formas às peculiaridades locais. Suas experiências e trabalhos se desenvolvem num processo contínuo de evolução que confere uma unidade no seu trabalho e permite a identificação de fases e momentos. Explora uma linguagem arquitetônica rica, cheia de
recursos formais articuladas à pesquisa e o uso de materiais diversos como vidro, concreto, cerâmica e madeira conseguindo resultados racionais práticos que demonstram uma preocupação estética aliada à criatividade e a inovações para a região.


Figura 06 - Antônio Augusto Barbosa Moura

Natural de Montes Claros nascido em 07 de outubro de 1941, Antônio Augusto Barbosa Moura é filho de Antônio Máximo de Moura e Maria da Conceição Barbosa Moura. Inicia
em 1961 o curso superior de Arquitetura e Urbanismo na Escola de Arquitetura da UFMG, graduando-se em 1965.

Logo após a graduação, viaja para a Europa, buscando um aperfeiçoamento e uma complementação da sua formação profissional. Faz curso de especialização na Universidade de Milão em Urbanística Técnica, além de cursos de língua na Universitá Italiana per Stranieri, Perugia, Itália e curso de inglês em Cambridge na Inglaterra. Sua grande oportunidade foi o estágio em Milão com o Arquiteto Ângelo Mangiarotti (1921),
atualmente um dos maiores Arquitetos do século 20 na Itália, atuando nas áreas de Urbanismo, Arquitetura e Design. A experiência na Europa num período bastante rico em termos de movimentos sociais de renovação na arquitetura e o contato com um dos mais renomados arquitetos italianos contemporâneos podem ser a explicação para que o arquiteto tenha desenvolvido um trabalho de qualidade indiscutível e já reverenciada por vários profissionais estudiosos da Arquitetura Moderna Brasileira.

Retorna ao Brasil em 1968, inicia de imediato o trabalho como arquiteto em sua cidade natal, Montes Claros.

Para que se pudesse aferir com mais precisão a quantidade de projetos de sua autoria, seja em conjunto com outros colegas ou individuais, foi feita uma pesquisa nos arquivos da Prefeitura, com a família, amigos e colegas de trabalho, coletando material ao longo dos anos. Chegou-se a um número de quase uma centena de edificações em um período de treze anos de trabalho. Foram cerca de 70 residências para algumas das mais tradicionais famílias da cidade, obras comerciais e públicas em Montes Claros, além de diversas outras cidades do Norte de Minas Gerais, como Bocaiúva (Igreja de Nosso Senhor do Bonfim), Salinas (Clube Campestre), Espinosa (Mercado Municipal), além de algumas residências na capital mineira. Paraos anos de 1970 é um número bastante expressivo. Por volta de 1980 o arquiteto passa a executar obras também para o Estado de Santa Catarina, nas cidades de Tubarão e Laguna, em função da Construtora do seu irmão João Gilberto, paralelo a obras em Montes Claros, até 23/02/1982, quando faleceu.

O arquiteto foi um dos desbravadores do recém iniciado Bairro Todos os Santos, além de obras em várias regiões da cidade. Antônio Augusto Barbosa Moura presidiu a AREA – Associação Regional dos Engenheiros, Arquitetos e Agrônomos do Norte de Minas, de 1972 a 1974, recebendo homenagem póstuma em 1985, nas comemorações dos 20 anos da Entidade, pelos serviços prestados. Como exemplo do seu vasto trabalho, a figuras 07, 08, 09 e 10 apresentam um croqui de uma residência e três fotografias que demonstram as características e linhas arquitetônicas que lhe são peculiares.


Figura 07 - Croqui de residência dos anos de 1970

As obras mostram um arquiteto no início do seu trabalho fortemente influenciado por uma formação nos moldes modernistas da época pós-Brasília e vindo de uma Europa também passando por revoluções. A opção é sempre pela cobertura em laje plana impermeabilizada ou coberta por telha em fibrocimento oculta por platibanda. Esta platibanda toma várias formas de acordo com o partido adotado. Outro elemento compositivo é o uso das vigas aparentes que são conjugadas à platibanda, além da variação da cor e dos materiais na marcação dos planos da edificação. A preferência pelo uso de pedras naturais, panos de vidro e revestimentos cerâmicos é notória e evidente. O paisagismo é também marcante. A utilização de alguns tipos de vegetação como agaves, arecas bambu, bromélias, dracenas, etc., evidencia a conjugação da arquitetura e o paisagismo, além da preocupação com o entorno. Há uma preocupação com a simetria na composição das fachadas. O equilíbrio entre os elementos que fazem parte do repertório formal do arquiteto é observado quando se repara a disposição das aberturas, vãos, materiais e outros elementos.


Figura 09: Residência João
Godinho - Bairro São José
Foto: Lucília Teixeira

Figura 08: Residência Antônio Carlos
Amaral - Bairro Todos os Santos
Foto: Lucília Teixeira


Figura 10: Residência José Carlos
Gomes - Bairro Todos os Santos
Foto: Lucília Teixeira

Já se vão 25 anos desde o falecimento do arquiteto. No entanto, a sua vida profissional, marcada por esses 13 anos de intensa atividade em Montes Claros e região, é aqui retomada no realce da sua obra. Esse tempo identifica-se com um período de intenso crescimento econômico e um processo de desenvolvimento que consolida Montes Claros como um dos mais importantes polos culturais do estado e, marcadamente, todo o Norte de Minas. Assim, pode ser ressaltada no trabalho de Antônio Augusto uma contemporaneidade com o melhor da produção arquitetônica em Minas Gerais, comprometida com uma visão de mundo cosmopolita, ao mesmo tempo em que é evidenciado um modo-de-ser identificado com os valores regionais, que marca a qualidade de seu trabalho. Buscou- se aqui configurar uma trajetória de dedicação e compromisso que o arquiteto teve para com a arquitetura, com sua profissão e sua cidade. Para ele, a beleza da arquitetura sempre esteve no processo contínuo de transformação do espaço e nas possibilidades de se participar desta transformação. A cidade é para ser vivida, mas é também uma representação da vida que se tem e que se quer. Daí a percepção que o trabalho de Antônio Augusto Barbosa Moura faz parte da história de Montes Claros e é algo que precisa ser registrado, como também todos aqueles com relevante produção.

BIBLIOGRAFIA

AMORIM FILHO, Oswaldo B. Cidades Médias e Organização do Espaço no Brasil. Revista Geografia e Ensino, Belo Horizonte: n.5, p.5-34, Junho, 1984.

BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo; Perspectiva, 1981.

MOURA, Antônio Augusto Pereira, HERSMDORFF e PRATA, Mariana. Morphological Analysis and Urban Intervention in a Piece of Montes Claros: The Conferência Cidade Cristo Rei In: International Seminar on Urban Form, 2007, Ouro Preto

MOURA, Antônio Augusto Pereira. A Arquitetura de Antônio Augusto Barbosa Moura. Montes Claros: Fundação Santo Agostinho, 2007.

PEREIRA, Anete Marília; SOARES, Beatriz Ribeiro. Tendências e Problemas da Urbanização de Cidades Médias: O Caso de Montes Claros. In: Prefeitura Municipal de Montes Claros. http://www.montesclaros.mg.gov.br


PADRE ADHERBAL MURTA DE ALMEIDA

Dário Teixeira Cotrim
Cadeira N. 93
Patrono: Simeão Ribeiro Pires

A cidade de Montes Claros está de luto. Estamos todos nós de luto. Morreu o ilustre cônego Adherbal Murta de Almeida. Agora os seus companheiros e confrades da Academia Montesclarense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros, amigos de momentos inesquecíveis e de memoráveis lutas em favor da literatura e da história montesclarense, profundamente feridos, preferem ficar diante de seu corpo inerte e em pleno silêncio. É assim porque a sepultura é berço mudo de onde as almas sobem, e sobem em silêncio, para a morada eterna.

É o silêncio da dor que a própria dor nos impõe. É o silêncio frio, calculista e que machuca os nossos corações na calada das câmaras ardentes. Se a cruel realidade não fosse tão irrecusável, diríamos que não é o seu corpo que repousa imobilizado neste esquife fúnebre todo envolvido em meio às inebriantes flores. Diríamos mais, não houvera morte alguma em definitivo, apenas uma mudança de endereço: a morada do Pai eterno. Quiçá a sua presença no céu seja mais interessante e muito mais necessária do que aqui na terra! Afinal, tê-lo sempre por perto há de ser um lenitivo para as angústias que maldosamente envolvem a alma de todos nós pobres pecadores.

Por isso, ao chorar a morte do cônego Murta de Almeida, fazemos com a emoção de quem perde um verdadeiro amigo, um dos mais eruditos neste momento histórico da nossa querida cidade de Montes Claros.

O cônego Murta de Almeida não foi dos que poderiam recolher-se, pela avançada idade, a uma vida claustral. Ao contrário, ele participava com entusiasmo e alegria de todas as atividades literárias e religiosas da nossa comunidade. Era presença esperada, sempre. Ele acreditava que a vida e a morte se resumiam apenas num mesmo sonho: o sonho do homem em estado estertor maravilhado com o alvorecer de um novo dia. Ai! Morrer às vezes torna-se uma coisa bonita e fica a impressão de que a morte não existe. O melhor mesmo é nunca se esquecer de que, além da morte, há uma esperança num facho de luz.

Melhor dizendo: infelizmente o cônego Murta de Almeida morreu, sim, senhor. E podemos até afirmar categoricamente que a sua morte, para nós, foi muito cruel. A propósito, a morte não só o tirou fisicamente do nosso convívio, como também aniquilou quase um século de história em prosa filosófica e em poesia relativamente lógica. Mas, espiritualmente a sua presença será perene e eterna, assim como o archote luminoso da incessante esperança.

Nos pórticos da egrégia Academia Montesclarense de Letras o cônego Murta de Almeida ocupava a Cadeira 42, que tem como patrono o cônego Carlos Vincart. No Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros ele foi o fundador da Cadeira 99, que tem como patrono Waldemar Versiani dos Anjos. Com o mesmo pesar com que escrevo esta crônica para prestar-lhe uma última homenagem, desejo, ainda, acentuar aos distintos confrades que na sua posição de eminente educador e acadêmico das letras, soube cumprir com retidão e com responsabilidade os deveres didáticos e eclesiásticos.

Não obstante a clarividência da morte, o temos vivo entre nós! Porque o seu espírito dinâmico e as suas palavrasponderadas, seguras e firmes, espelham muito bem a simplicidade cativante do seu coração generoso. Entretanto, por ironia do destino o cônego Adhebal Murta de Almeida veio a falecer no dia oito de março - Dia Internacional da Mulher – o que deverá ficar registrado em sua lousa dourada. Aliás, o escritor Felix Pacheco, na sua obra Janela Dourada disse que “o alicerce do mundo está nas lousas”. O seu nome, portanto, aí já está presente numa dourada lousa, porque ingressou no panteão onde moram aqueles que bem souberam servir e dignificar a terra em que nasceram.


Dário Teixeira Cotrim e o Cônego Adherbal Murta de Almeida


RESTAURAÇÃO DA ARTE DE GODOFREDO GUEDES
NO ANO DO SEU CENTENÁRIO

Felicidade Patrocinio
Cadeira N. 20
Patrono: Camilo Prates

O QUADRO DE NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO DE
GODOFREDO GUEDES

O reconhecimento de que uma sociedade voltada para a arte e a cultura se alimenta e vive das imagens e expressões simbólicas que abriga e põe em circulação levou-nos à busca amorosa da restauração da pintura de Nossa Senhora da Assunção de Godofredo Guedes, o primeiro grande pintor de Montes Claros, cognominado “o pai das artes “da cidade. Trata-se de uma belíssima obra de arte de tamanho 2,10 por 1,53ms
pertencente à arquidiocese de Montes Claros e que se encontrava na parede da sala de entrada do Seminário Diocesano do Imaculado Coração de Maria.

Como professora de Estética do Curso de Filosofia desse Seminário tivemos acesso ao belo quadro, diante do qual nos postamos em reverência à beleza da sua composição e cores. Datado no ano de 1940 e assinado pelo seu autor Godofredo Guedes, o quadro apresentava sinais evidentes de destruição, devido ao contato com o público que nele deixou inscrições a tinta de caneta, sinais de tentativa de recuperação inadequada, efeitos danosos de fungos e o pior, rasgos, que a partir da secura da tela e tintas, causada pelas ações do tempo e espaço e pelos toques de mãos e dedos de contempladores irresponsáveis, resultaram em buracos, alguns pequenos e outros grandes. Numa observação mais aprofundada, descobrimos os olhos dos anjos com pequenas perfurações bem ao centro das pupilas.

Todo o meu ser foi tomado de amor pela obra. O contato com tão importante expressão artística para a história das artes plásticas de Montes Claros, motivou-me a reflexão do anacronismo das imagens tão apontado contemporaneamente pelos historiadores da arte. Reflexão esta que fortaleci nas palavras de Maurice Halbwachs, que disse ser “impossível compreender que pudéssemos recuperar o passado se ele não se conservasse, com efeito no meio material que nos cerca” (Halbwachs, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo. Vértice.1990, pág. 237). Entregue àquela reflexão e buscando fortalecer a minha vontade, estendi o meu olhar a esse mundo contemporâneo, o mundo das imagens passageiras que apontam o paradigma de incessantes rupturas e descartabilidade.

Interessante é que, quanto mais eu adentrava à estética do quadro, mais eu adentrava a minha essência vital, aquela da necessidade de convivência com o Belo e do reconhecimento de que sou um ser de memória, apesar de habitar a era do descartável.

Emocionada, atualizei a lembrança das palavras de George Didi-Huberman (DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant le temps. Paris. Minuit.1990, pag. 235). Trad. feita pela autora do artigo). ”Diante de uma imagem, enfim, nós temos humildemente que reconhecer o seguinte: que ela provavelmente nos sobreviverá, que nós somos diante dela o elemento frágil, o elemento de passagem e que ela é diante de nós o elemento do futuro, o elemento da durabilidade. A imagem temfreqüentemente mais memória e mais futuro do que aquele que a olha”. A partir daí senti-me responsável pela obra. Consciente de que os bens artísticos são testemunhos vitais, consciente de que a “arte é a assinatura do homem na história” (Chersterton) e que a sua moldura é a cultura que a inspirou, concluí que a função da obra de arte ainda é a da imperecibilidade. Nela, está presente a relação do homem com a sua verdade, ela é o reflexo do seu ethos.

Se é verdade que uma cultura toma consciência de si através dos seus sinais e símbolos, dentre estes destaca-se a arte. Concluí mais, que apesar de toda a mudança ocorrida na percepção humana, ainda é necessário um olhar no passado para
nos compreendermos e nos estruturarmos sem alienações. E a arte não só conserva o passado, como também revitaliza o presente.

O meu coração bateu forte e então assumi definitivamente a responsabilidade pela restauração da obra. Ela não só pertencia àquele Seminário, que no momento não tinha condições de arcar com as despesas do trabalho, mas pertencia a mim também, a toda a sociedade de Montes Claros.

Restaurar é, e seria, guardar, resguardar. Conservar aquilo que pertence a todos devido a sua identidade, memória e história. Seria conceder às futuras gerações as sementes de vida que afloraram no passado e que devido a sua beleza e força se fazem eterna presença. Iniciei as providências. Primeiro um levantamento do histórico daquela obra.

A OBRA

Inspirado talvez, numa das Virgens de Estebão Murilo (conforme pesquisa do pintor Afonso Teixeira), essa pintura de Godô, medindo 2.10 cms altura X 1.54 cms largura, de acordo com a sua iconografia nos reporta à Assunção de Maria aos céus, ou à Nossa Senhora da Assunção. No alto e por trás da sua cabeçaum grande clarão (um amarelo fantasticamente luminoso), de acordo com a Bíblia no Apocalipse”: mulher revestida de sol, tendo aos pés a lua”. Olhos para o alto, mãos cruzadas sobre o peito, em oração, vestes e mantos diáfanos em movimento, nas cores azul e branco. Aos pés, anjos em movimento harmonioso elevando-a para o alto. Quanto ao estilo de representação, como conclusão da discussão que desenvolvi com especialista na área,
o montesclarense Afonso Prates, graduado em Restauração pela Universidade de Ouro Preto, chegamos à conclusão de que apesar do artista Godofredo Guedes sempre se definir como um clássico e acadêmico, nesta figuração tendeu mais ao Barroco, apesar da presença de sinais clássicos.

De acordo com apreciadores, pode-se dizer que a pintura de Godofredo Guedes divide-se em duas “águas”. Aquela da pintura feita sob encomenda, à qual emprestava todo o seu talento e aptidão, geralmente retratos, casarios do patrimônio histórico da cidade, naturezas mortas e santos, e a pintura que fazia nas premências das necessidades financeiras, para vender imediatamente e fazer dinheiro para as despesas da grande prole, geralmente paisagens, esta, uma arte mais ligeira, no entanto de qualidade também.

Dentro destes aspectos conclui-se que a Nossa Senhora da Assunção referida é uma obra de encomenda.

Entrevistei o Monsenhor Ozanan Maia ex-reitor do Seminário (em 16-04-008), que a acompanha há tempos. Não sabendo quem a encomendara, deu-me o nome do bispo de Montes Claros da época da sua execução, ano de 1940, Dom João Antonio Pimenta, que habitava o Palácio da então diocese, construído nesta cidade na Praça Dr Chaves no ano de 1917. O Monsenhor Ozanan conheceu o quadro no ano de 1957, quando começou a estudar no Seminário que era na Avenida Coronel Prates, onde depois foi prefeitura de Montes Claros e hoje é o mais novo Supermercado Bretas da cidade. Naquela época o quadro ficava em um cavalete ao lado do palco onde os alunos faziam concursos de oratória, peças teatrais sobre as cruzadas cristãs, fato este que comprova uma constante manipulação, devido à limpeza do ambiente e organização de cenários. Lá permaneceu até o ano de 1968, quando foi fechado o Seminário e Dom José Alves Trindade, bispo da época, levou-o para o seu palácio à praça Dr. Chaves, onde ficou até o ano de 1996, quando novamente retornou ao Seminário, então com entrada pela rua Reginaldo Ribeiro. Ficou lá até o ano de 1998, quando foi transferido para o prédio atual do Seminário Diocesano do Imaculado Coração de Maria, no Bairro Ibituruna, onde está até hoje.



O ARTISTA GODOFREDO GUEDES

Godofredo Fernandes Guedes, apelidado Godô, compositor, instrumentista, louthier e pintor, chegou a Montes Claros no início, da década de 30 e se fez montes-clarense. Viera de Riacho de Santana, Bahia, onde nascera a 15 de Agosto de 1908, casou-se com Júlia de Castro e teve 8 filhos, muitos deles nascidos em Montes Claros, dentre eles o famoso cantor e compositor Beto Guedes. Fez-se conhecido pela pluralidade da
sua arte. Como compositor, de acordo com a crítica, ele passeia por vários gêneros com facilidade, sem perder a musicalidade própria. Dentre as suas composições encontram-se, além de marchas e valsas, muitos chorinhos. Deixou mais de 160 partituras, muitas delas ainda inéditas para o público. Como instrumentista foi clarinetista de incrível bom gosto, enquanto a maioria usava mais o piado do instrumento ele priorizava o grave, tocava também o saxofone e o violão. Tocava à noite no melhor bordel da cidade.

Como pintor se identificava como acadêmico, clássico, purista. De acordo com entrevista que fiz ao escritor Wanderlino Arruda sobre este mestre da pintura (entrevista feita no ano de 2002 na casa do entrevistado), dentre as regras que ele se impunha, era quase lei o traço partir sempre da esquerda para a direita, como na escrita e de cima para baixo, deixando nesta seqüência as partes prontas. Fazia a linha reta à mão, não admitia réguas. Só admitia pintar com a tela sobre o cavalete. Tinha muitos pincéis velhos; a cada um, uma função. Conhecia todas as cores e, providenciando misturas, fabricava suas tintas, no entanto admitia que não conseguia fabricar o amarelo e dois tons de verde. Usava óxido de zinco chinês, pó xadrez, óleo de linhaça, verniz poliuretano, pitadas de secante em pó, entre outros materiais. Cozinhava algumas misturas para obter consistência, brilho, secagem rápida. Ele próprio fazia também a tela e a moldura. Quanto à sua relação com os artistas da época, ensinou ao Wanderlino Arruda a arte da pintura, mas não a ensinou aos filhos, mesmo assim o seu filho Hélio herdou a facilidade com os pincéis. Dizia ser a arte muito sofrida, se não a amasse tão absolutamente teria sido infeliz.

No ano de 1974 ajudou os artistas da cidade a criarem a feira de arte livre que primeiro funcionou na Praça do Automóvel Clube, transferindo-se a seguir para a Praça da Matriz. Pintou a famosa Via Sacra da catedral da gruta da Lapa do Bom Jesus na Bahia. Pintou um painel encomendado por Israel Pinheiro, quando governador de Minas.

Pintou muito por encomenda; personagens conhecidos do cotidiano montes-clarense, casario do patrimônio cultural da cidade. Paralelo a grande arte encomendada, pintava paisagens, muitas do Rio São Francisco e outras que vendia na sexta-feira, entregando à Dona Júlia, sua esposa, o dinheiro para fazer a feira do Sábado e prover a vasta descendência.

Nos últimos tempos Godofredo descobriu as facilidades da tecnologia e adotou a técnica de pintar retratos, sobre os próprios, já revelados pela técnica do daguerreótipo.

Ainda de acordo com o presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros, Wanderlino Arruda, o grande historiador Hermes de Paula foi quem primeiro valorizou a pintura montes-clarense, cujo entusiasmo o levava a afirmar“ ter certeza da boa qualidade da pintura de Godofredo Guedes, mais do que da arte de Miguel Ângelo ou Leonardo da Vinci, pois quanto ao Godofredo ele conhecia , assim como as pessoas que ele via pintar, enquanto os demais ele não testemunhara”.

Reconhecendo o valor da obra deste artista, tanto na música quanto nas artes plásticas, a cidade homenageou-o, adotando o seu nome na galeria de arte do Centro Cultural e em uma as praças do centro de Montes Claros.


A RESTAURAÇÃO FEITA PELO PINTOR
AFONSO TEIXEIRA

O Monsenhor Silvestre, atual reitor do Seminário confiante no meu propósito, pôs a obra a minha disposição. Iniciei a caminhada em busca de patrocínios e da habilitação para o restauro. Ofícios, cartas, pedidos. Ajudou-me em alguns contatos o professor da Unimontes e aluno do Seminário, Otoni Caribé. No entanto nada acontecia.

Depois de um ano, e já no ano do centenário de Godô, vendo os buracos se alargarem, desesperei-me e procurei o artista Afonso Teixeira, destacado pintor montes-clarense pela técnica perfeita, pela beleza das madonas que cria, enfim pela competência do seu trabalho. Relatei-lhe a questão e fiz um pungente pedido-proposta: que assumisse a restauração do quadro imediatamente, acenei-lhe que poderíamos contar com a orientação do especialista Afonso Prates, graduado em restauração, o que de fato aconteceu. Após o trabalho, tentaríamos o patrocínio, que poderíamos conseguir ou não.

Afonso Teixeira abraçou imediatamente a causa. Demonstrando uma disposição incomum, priorizou num espaço de 3 meses o trabalho de restauro em detrimento do seu. Acompanhei literalmente a odisséia, já que transportava o artista ao seminário, duas vezes por dia. Sou testemunha e participante do evento, emoções e trabalho. Durante o percurso Acompanhei literalmente a odisséia, já que transportava o artista ao seminário, duas vezes por dia. Sou testemunha e participante do evento, emoções e trabalho. Durante o percurso alternavam-se sentimentos de angústia, admiração, preocupação, paixão, indignação, entusiasmo e responsabilidade. O artista se propôs uma restauração dentro dos padrões internacionais, aqueles que regem a conservação das mais importantes obras artísticas do planeta, cujo princípio parte da aplicação de
materiais incompatíveis com os pintados pelo autor, para assim propiciar a reversibilidade do feito se assim for necessário e se a obra sofrer novos sinistros. Escolheu com propriedade a restauração ilusória na qual, mesmo usando materiais antagônicos aos do autor, mas aplicando técnica precisa, pode-se levar o espectador à ilusão de que o quadro não sofrera nenhum dano até então. E assim foi feito.

À medida em que se limpava a obra e as cores resplandeciam, o mesmo acontecia às nossas faces. A beleza daquela expressão nos arrebatou aos dois e nela ficamos presos. Afonso apaixonou-se pelo quadro, fazia-lhe juras de amor, dialogava de viva voz e através dos pincéis com Godofredo. As dificuldades foram muitas, devido aos estragos e buracos serem extensos, mas o amor e a dedicação venceram. Foram necessários materiais que agilizamos como: terebentinas importadas, tintas à base de água de diferentes qualidades e procedências, lupa de grande grau de ampliação, ceras puras de abelha, anti-fungos, até antibióticos e mais que tudo, a experiência e absoluta competência do artista. Ajudou também a convivência do restaurador com o autor quando este era vivo. Afonso convivera com Godofredo Guedes, visitara o seu atelier e o vira pintar por muitas vezes, conhecia o movimento de seu gesto artístico e o pôs em prática. Partiu do restauro da tessitura da tela, da recomposição dos buracos para a limpeza das tintas e recuperação da pintura nas partes sinistradas. Um trabalho pausado, lento, com avaliação de cada etapa.

Diante do resultado final, ficou claro para mim, por que esse pintor restaurador arrebanhou quase todos os primeiros prêmios do CAAP (Concurso Anual de Artes Plásticas de Montes Claros) nos anos de 1982, 84, 86 e 87. Ficou claro para mim por que as suas obras se destacam nas galerias e leilões do país, em meio às obras de nomes como Bracher, Aldemir Martins, Bianco, Fukuda, Marcier, Inimá de Paula e outros.

E quanto à obra em si, a pintura da Nossa Senhora da Assunção, agora mais bela e resplandecente, como no dia em que Godofredo a pintou, voltou ao seu lugar de antes, a sala de visitas do Seminário Arquidiocesano Maior de Montes Claros, até que se criem aqui os museus adequados e ela possa ser dividida com toda a população.


Nossa Senhora da Assunção de Godofredo Guedes


TRATAMENTO DOCUMENTAL DA IMPRENSA NORTEMINEIRA:
UM RESGATE DA HISTÓRIA E DA MEMÓRIA
REGIONAL – RELATO DE EXPERIÊNCIA INCLUSIVA

Filomena Luciene Cordeiro
Cadeira N. 29
Patrono: Demóstenes Rockert

RESUMO: O tratamento documental não se restringe apenas ao trabalho de restauração de papéis degradados, mas através deste processo nota-se a reconstrução da cidadania por meio do resgate do acervo, reforçando a idéia de preservação da memória local e regional. O Projeto denominado “Tratamento Documental do Fórum Gonçalves Chaves e da Imprensa Norte Mineira: Um Resgate da História e da Memória Regional” vem ao encontro do pensamento de Dallari em relação ao conceito de cidadania expresso em um conjunto de direitos e deveres possibilitando às pessoas a participação ativa na vida, sobretudo no processo político-econômico e social por meio do acesso à informação. Ser cidadão é não estar marginalizado ou excluído da vida social e de tomadas de decisões. O compromisso da Universidade Estadual de Montes Claros consiste em disponibilizar esse acervo riquíssimo para pesquisa, bem como informações de caráter probatório e histórico para os cidadãos Montes-clarense e norte-mineiros. O objetivo do referido projeto consiste em tratar os documentos da imprensa e do poder judiciário de Montes Claros, contribuindo no processo de construção da cidadania. Nesse sentido, a preservação desses documentos é de grande relevância para a conservação da história para as gerações futuras visando informá-la da sua história e, assim desenvolver o ser cidadão. Nessa perspectiva, as fases do projeto são: a) primeira fase: treinamento dos bolsistas de Iniciação Científica Junior. b) segunda fase: constitui nas seguintes etapas: 1ª) Identificação do estado de degradação dos documentos e o tipo de tratamento demandado; 2a ) Higienização dos documentos; 3a ) Detectar orifícios; 4a ) Restauração dos papéis; 5a) Secagem dos papéis; 6a ) Planificação e desacidificação de documentos; 7a) Refrigeração de documentos. c) terceira fase: disponibilização dos documentos para pesquisa aos consulentes. Os resultados atuais desse projeto consistem na disponibilização desses documentos ao público em geral deixando-o informado acerca dos acontecimentos do seu passado, possibilitando aos cidadãos reconstruir a memória e a cidadania em várias dimensões do ser humano.

Palavras-chave: História, Arquivo, Documento, Memória, Tratamento Documental.


1. INTRODUÇÃO

Este trabalho objetiva apresentar o relato de experiência, especificamente em relação aos jornais denominados Gazeta do Norte doados pelo Conservatório de Música Lorenzo Fernandes, de Montes Claros e os jornais Correio do Norte, bem como descrever as atividades do Projeto “Tratamento Documental do Fórum Gonçalves Chaves e da Imprensa norte-mineira: um

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1- Graduada em História pela Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes, especialista em Ciências Sociais pela Unimontes e em Gestão da Memória: Arquivo, Patrimônio e Museu pela Universidade Estadual de Minas Gerais e mestre em História pela Universidade Severino Sombra. Professora do Departamento de História da Unimontes.
2- Professor efetivo do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes. Graduado em Pedagogia/Filosofia pelo CES/JF – Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora e Teologia pela Pontifícia Universidade Pontifícia Católica de Minas Gerais – PUC/MG. Especialista em Ciências Sociais pela Unimontes e em Ensino Religioso pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Geral PUC/MG. Mestre em educação pelo Instituto Superior Enrique José Varona - Havana – Cuba

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Resgate da História e da Memória” desenvolvido pelo Serviço de Pesquisa e Documentação Regional - SPDOR em parceria com os Departamentos de História e Educação da Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes por meio de estudantes do ensino médio de escolas públicas de Montes Claros, especificamente a
Escola Estadual Dr. Carlos Albuquerque, Escola Estadual Armênio Veloso, Escola Estadual Irmã Beata e Colégio Militar Tiradentes, assim como Jaldete Souza Rios, servidora do SPDOR, e financiamento das bolsas pela Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG.

Ressalta-se que o referido projeto é executado desde outubro de 2005 a setembro de 2006, quando teve a oportunidade de ser renovado e postergado até junho de 2007 contando nesse período com 06 (seis) bolsistas. Nessa mesma perspectiva, o projeto foi novamente encaminhado para a Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Unimontes no mês de setembro de 2007 objetivando a renovação das bolsas de iniciação científica – BIC Júnior para a sua continuação. Essa renovação se justifica pela grande demanda de documentos que tem como suporte o papel sob custódia do SPDOR necessitadas de interferência. Renovação concedida após aprovação do projeto vigorando até fevereiro de 2008.

Nesse sentido, o relato de experiência apresentado faz uma discussão teórica e explica a execução das etapas desenvolvidas pelo projeto.

2. TRATAMENTO DOCUMENTAL: DISCUSSÃO TEÓRICA

No Brasil, a conscientização sobre a importância da preservação de documentos de arquivo vem crescendo tanto nas instituições públicas quanto entre os cientistas e a população em geral, possibilitando que as atuais e futuras gerações conheçam um pouco mais da sua história e do seu país.

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3 LE GOFF, J. Documento/monumento. In: ______. História e Memória, p.536.
4 BECK, Ingrid. Manual de documentos, 1991.
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Em geral e com o acúmulo de documentos gerados no cotidiano de uma empresa, de órgãos públicos ou privados e na vida das pessoas não se sabe ao certo que documentação preservar. É comum cientistas, pesquisadores, familiares e instituições considerarem importante apenas o resultado final de uma pesquisa ou de um trabalho. Porém, para a história, documentos que registram os passos intermediários são igualmente preciosos.

Por isso, deve-se ter muito cuidado com a seleção e avaliação de documentos com fins para a eliminação.

Conforme Le Goff3 , os documentos são registros e vestígios do passado permitindo ao homem conhecer a sua história. Nesse sentido, além da guarda adequada dos documentos visando a preservação da memória e da história é necessário conservá-los e tratá-los com técnicas próprias da arte da restauração garantindo-os para a posteridade.

Conforme Ingrid Beck 4, há vários agentes capazes de deteriorar documentos de papel, entre eles pode-se citar:

1. Clima tropical

Temperaturas que oscilam fazem com que o calor e a umidade, gerem graves problemas de condensação de umidade, alteração no volume de materiais e o crescimento intensificado de grande número de microrganismos e insetos que devastam coleções de documentos e livros. Os raios ultravioletas presentes na luz solar contribuem para a oxidação da celulose.

2. Poluição do ar

Constituída de um conjunto de gases, vapores e poeiras
dispersas no ar, provém das indústrias e de processos diversos de
combustão, inclusive de veículos automotores.

3. Químicas nocivas

Os produtos químicos, muitas vezes usados sobre o acervo como inseticidas e fungicidas, em arquivos e bibliotecas, também podem ser prejudiciais aos documentos pelas reações desenvolvidas sobre os materiais. Outros agentes nocivos são grampos metálicos, adesivos plásticos, auto adesivos, papéis e papelões ácidos.

4. Acondicionamento e manuseio

Acondicionamento inadequado e o manuseio sem zelo dos documentos pelo homem que pela falta de higiene das mãos (gordura, suor, resíduos de alimentos), além da postura incorreta, com apoio sobre o documento, anotações, rasgos, cortes e dobras danificam em grande escala o acervo.

De acordo com esse contexto propício a degradação dos documentos, os principais danos são causados devido às impurezas superficiais; fitas e etiquetas adesivas; tintas de escrever; impregnação de água; microrganismos; insetos e roedores e, sobretudo, pelo manuseio incorreto feito pelo homem aos documentos. Para cada tipo de degradação existe um tratamento específico e realizado por técnicos e/ou pessoas
treinadas para tal exercício.

O ideal é a conservação desse tipo de acervo, pois significa pensar em termos de futuro. De acordo com Ulisses Pernambuco M.

A conservação é a contraface da preservação. Pode ser entendida como reinteração da manutenção. São trabalhos renovados, os 5 cuidados repetidos e continuados.

A restauração é uma medida necessária, ou seja, é realizada quando o documento não foi conservado da forma adequada. Cesare Brandi define restauração como:

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5 PERNAMBUCO, Ulisses. Patrimônio cultural, s.p. (Apostila)
6 BRANDI, Cesare. Patrimônio cultural , s.p. (Apostila)
7 TAVARES, Regina M. M. Patrimônio cultural , s.p. (Apostila)

(...) uma operação técnica que tem por objetivo prolongar a vida de uma obra e retardar o processo de degradação devido ao envelhecimento dos materiais constitutivos. É uma operação crítica sempre entre duas estâncias: aspectos históricos e aspectos 6 estéticos.

Nesse sentido, preservação, consiste de acordo com Regina M. M. Tavares “(...) atitude do homem no sentido de manter o patrimônio que diz respeito à sua memória social necessária à sua identificação e alimentação de processos sociais 7 emergentes”. É guardar para a posteridade, tendo certeza que as futuras gerações terão acesso a trajetória dos seus antepassados no mundo em que vive.

A forma reparativa não é a solução eficiente na preservação de acervos, pois se trata de um processo moroso e caro. A ação mais eficiente é um programa gradual de preservação iniciado pelo controle preventivo dos agentes patogênicos, através da higiene sistemática do acervo e dos depósitos, detectando e eliminando possíveis infestações e danos diversos. Também se faz necessário, a otimização das condições de guarda com embalagens funcionais e adequação ambiental, ou seja, é necessário cuidar dos documentos para que sejam preservados para as futuras gerações.

Essas medidas devem ter respaldo oficial que implica em cuidados no sentido de estar de acordo com a legislação para a preservação de bens culturais. No Brasil, o discurso
preservacionista é bastante recente, surgindo após a década de 1960. Minas Gerais a partir da década de 1990 inicia uma gerência efetiva em relação a documentos de arquivo.

Nesse sentido, Montes Claros, cidade localizada no Norte de Minas Gerais, envida esforços8 no sentido de preservar seus bens culturais, entre eles os documentos de arquivo, porém se depara com muitas dificuldades.

No entanto, os projetos apresentados pela Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes e aprovados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG, a partir de 2001 constituem um marco na história da preservação de documentos de arquivo da Cidade.

A iniciativa da Universidade em trabalhar na perspectiva de preservar o patrimônio documental despertou a atenção da comunidade acadêmica, mas também do público em geral chamando a atenção para, o resgate de documentos relativos à história da cidade e da região norte-mineira.

Dessa forma, o presente trabalho consiste em relatar a experiência desse grupo que visa recuperar por meio do tratamento documental o passado vivo9 e presente por meio dos seus vestígios.

 

3. DESENVOLVIMENTO DO PROJETO

3.1- PRIMEIRA FASE – TREINAMENTO DE BOLSISTAS

3.1.1- Seleção dos bolsistas

A seleção dos estudantes foi realizada pela Pró-Reitoria de Pesquisa da Unimontes em escolas públicas de Montes Claros que encaixassem no perfil do Programa.

Esses alunos deveriam ter um histórico escolar cuja avaliação demonstrasse um bom desempenho. A disciplina na sala de aula e na escola também foi avaliada. Os estudantes selecionados para o trabalho de pesquisa no SPDOR foram:

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8 - Desde 1988, Montes Claros por meio de órgãos públicos vem desenvolvendo trabalhos e iniciativas visando a preservação do patrimônio cultural. Pode-se citar como exemplo a criação do Centro de pesquisa e Documentação regional da Fundação Norte Mineira de Ensino Superior, atual Unimontes e do Arquivo Público da Câmara Municipal de Montes Claros, entre outros.
9 - Borges, Vavy Pacheco. O que e historia. 8 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
(Colecão primeiros passos, v. 17)

Aldeir Gonçalves Rodrigues, Aline Kelly Dantas Silva, Aparecida de Cássia Moreira Duarte, Camilla Mariane Menezes Souza, Joice Delcho Cardoso e Mariany Dias Reis.

Os bolsistas de iniciação científica júnior estiveram sob a coordenação geral da professora Filomena Luciene Cordeiro por causa da especificidade do desenvolvimento do projeto, com a orientação de um professor do Departamento de História, Elizabete Barbosa Carneiro e do Departamento de Educação João Olímpio Soares dos Reis.

3.1.2- Treinamento

Após a seleção, os bolsistas participaram de reuniões diversas quando foram discutidos temas acerca do trabalho, assim como questões administrativas.

Foram realizados também durante esse período os seguintes cursos: Patrimônio cultural: a arte de conservar, restaurar e preservar documentos e similares; Noções Básicas de Informática; Relacionamento interpessoal: as dimensões da criatura humana; A construção ética nas relações interpessoais.

Esses cursos objetivaram treinar os bolsistas para lidar com atividades de restauração de documentos, bem como prepará-los com questões relativas a convivência e trabalho em grupo.

Todos esses cursos objetivaram promover o crescimento profissional, intelectual e pessoal dos bolsistas com o fim da execução do trabalho demandado pelo projeto, ou seja, o tratamento de parte de documentos do Fórum Gonçalves Chaves e da Imprensa Norte Mineira e, conseqüentemente resgatar a história e a memória local e regional.

3.2- SEGUNDA FASE: TRATAMENTO DOCUMENTAL

3.2.1- A documentação tratada e restaurada

O acervo para ser tratado, de acordo com a proposta do projeto, consiste na intervenção em parte dos documentos do Fundo “Fórum Gonçalves Chaves” e da Imprensa Norte Mineira, nessa fase especificamente os jornais “Gazeta do Norte” e também 'Correio do Norte”. Porém, a renovação da bolsa de iniciação científica se justificou com o objetivo de priorizar os jornais “Gazeta do Norte”. Nesse sentido, o trabalho consistiu no tratamento dos referidos jornais.

Esses jornais denominados “Gazeta do Norte”, alvo desse projeto, pertenciam a uma personalidade política de Montes Claros, que fez a doação para o Conservatório Estadual de Música Lorenzo Fernandes na década de 1970 visando protegêlos e preservá-los para a posteridade. O Conservatório de Música Lorenzo Fernandes “(...) é um pólo formador de talentos e irradiador de expressões artísticas e tem tido papel histórico no processo de ensino-aprendizagem das artes em nosso estado 11.”

O Conservatório Estadual de Música Lorenzo Fernandes possui um Departamento de Cultura que cuidou dos jornais Gazeta do Norte até o ano de 2004. O Conservatório por não possuir condições físicas e técnicas para tratar desses jornais, cientes da sua importância, assim como sensibilizado pelo estado atual dos mesmos, achou por bem doá-los para a então Divisão de Pesquisa e Documentação Regional da Unimontes. Por causa do acondicionamento inadequado e o manuseio constante e freqüente de pesquisadores nos referidos jornais, eles demandaram intervenção para sua preservação. Deve-se ressaltar, porém, que esses jornais, apesar de constituir alvo principal do projeto, não foi possível fazer o tratamento em todos por causa da quantidade e especificidade do trabalho.

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10 - Nesta fase do projeto contamos com o trabalho de uma servidora da DPDOR, Jaldete Souza Rios.
11- CONSERVATÓRIO DE MÚSICA LORENZO FERNANDES. Projeto do Conservatório. Montes Claros, jun. 1989, s.p.

Parte do acervo dos jornais Gazeta do Norte foi tratado de acordo com propostas da segunda fase que consiste em quatro etapas, conforme descrição abaixo:

1ª Etapa – Identificação do estado de degradação dos documentos e o tipo de tratamento demandado

Essa etapa consiste em detectar os diversos tipos de danos existentes no documento, ou seja, é uma avaliação geral do estado de conservação dos mesmos. É de relevância a execução dessa etapa porque, a partir dela, serão tomadas as decisões acerca do tratamento demandado pelo documento.

No momento do diagnóstico das danificações dos documentos verificou-se também o Ph das folhas de papéis por meio da fita metanassol visando detectar a sua acidez e alertar para medidas de segurança no manuseio, tratamento e guarda.

2ª Etapa – Higienização dos Documentos

O trabalho de higienização consiste em limpar os documentos com trincha e/ou pincel com o objetivo de retirar as sujidades concentradas ao longo do tempo em cada página. Utiliza-se a mesa de higienização para execução dessa tarefa. O bisturi e o estilete são ferramentas úteis na retirada de excrementos de insetos e roedores. Também se retira qualquer material metálico, como clipes e grampos, visando proteger o documento de possíveis ferrugens. Além da trincha e do pincel usa-se também o pó de borracha12 para higienizar os documentos garantindo a retirada de sujidades, sobretudo de poeira adquirida com o tempo, gerando um clareamento do papel.

3ª Etapa – Detectar orifícios

Na seqüência os documentos são levados folha a folha para a mesa de luz13 onde foram detectados os orifícios, sobretudo os menores, para as intervenções necessárias.

4ª Etapa – Restauração dos papéis

Essa etapa demanda tempo e cuidado da pessoa que irá executar a tarefa já detectada na ficha de diagnóstico. Conforme abordagens anteriores, esse momento consiste na intervenção do técnico e/ou pessoa treinada para tal trabalho visando recompor os danos no papel. Para essa tarefa utiliza-se o material próprio, entre ele, papel especial14 e cola metil-celulose .

O trabalho realizado dependerá da deterioração detectado no documento podendo ser a velatura, a obturação e a emenda.

Após os documentos restaurados, eles serão acondicionados em folder, pacotilha e por fim, em uma caixa confeccionada para esse fim.

Os documentos, após a restauração ficam molhados por causa dos produtos utilizados. Nesse sentido, o papel é colocado na secadora de papel, para secagem. Essa etapa é importante porque, a partir dela, será executado outros procedimentos já diagnosticado anteriormente.

6ª Etapa – Planificação e desacidificação dos documentos

Após o trabalho de intervenção nos documentos, eles se apresentam abaulados por causa dos materiais utilizados, sobretudo os líquidos. Para a planificação é usado a mesa de sucção, que colabora no sentido de planificar o papel, bem como no momento da desacidificação dos documentos.

7ª Etapa – Refrigeração dos documentos

Os papéis que apresentam infestações de fungos e mofos passam pela refrigeração. O processo consiste em colocar em um

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12 - Este pó é produzido com a utilização do ralador doméstico transformando a borracha.
13 - Com utilização deste equipamento foi possível identificar , todos as perfurações mesmo aquelas mais difíceis, evitando que nenhum orifício deixasse de ser obturado.

saco plástico o documento, de onde retira-se todo o ar e o veda para colocá-lo no freezer. Esse processo de refrigeração não foi necessário nos documentos trabalhados pelos bolsistas, porém os mesmos foram treinados com outro acervo visando assimilar
todas as fases do trabalho.

3.3 – TERCEIRA FASE: DISPONIBILIZAÇÃO DOS DOCUMENTOS PARA PESQUISA

Essa fase consiste na disponibilização dos documentos tratados para consulta aos pesquisadores e ao público em geral. Nesse sentido, parte dos documentos que sofreram intervenções foram fotocopiados para acesso na Sala de Consulta visando proteger o original. Mas caso seja necessário a pesquisa no documento original ou haja mais consulentes na Sala de Consulta e este é liberado.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os objetivos do projeto constituíram os seguintes:

§ Oportunizar a concretização do processo ensinoaprendizagem e a inclusão, bem como a iniciação científica de estudantes do ensino médio de escolas públicas de Montes Claros no tratamento de documentos.

§ Identificar o estado e tipo de tratamento demandado pelos documentos do acervo da Coleção de jornais Gazeta do Norte, tratar tais documentos e torná-los disponíveis, a fim de conservar a história e a memória regional.

Diante dos objetivos propostos, o referido projeto conseguiu alcançar as metas, cujos resultados finais consistem na capacitação de estudantes do ensino médio de escolas públicas de Montes Claros para atuarem no tratamento de documentos de arquivo e sua perspectiva de inserção na Universidade por meio do exercício nas atividades de pesquisa, assim como a apresentação de trabalhos publicados em anais de eventos.
Foram tratados e restaurados nove livros encadernados dos jornais “Gazeta do Norte” de 1918 a 1935.


REFERÊNCIAS

BECK, I. Manual de conservação de documentos. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça – Arquivo Nacional, 1985.

BELLOTTO, H. L. Arquivos permanentes: tratamento documental. 2 ed. Rev. e ampl. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

CORDEIRO, F. L. A cidade sem passado: políticas públicas e bens culturais de Montes Claros/MG. Um estudo de caso. Vassouras, 2004, 197 F. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade Severino Sombra.

LE GOFF, J. Documento/monumento. Campinas: Unicamp, 2003, p.525-541.

GOMES, Sônia de Conti. Técnicas alternativas de conservação: um manual de procedimentos para manutenção, reparos e reconstituição de livros, revistas, folhetos e mapas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1992. 79P.

SPINELLI JÚNIOR, Jayme. A coservação de acervos bibliográficos e documentais. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1997. 90p.

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14 - Conhecido como mimo ou japonês de textura fina é aplicado na parte textual do documento já que não compromete a leitura. O papel com uma gramatura maior é utilizado na reconstituição de margens.
15 - É composta de um pó que diluida a agua destilada pode ser aplicada aos documentos.

 

NUMISMÁTICA MONTES-CLARENSE

Prezado Simeão Ribeiro,

Estas cédulas me foram oferecidas pelo bondoso farmacêutico Mário Versiani Veloso, tão admirador e amigo de nossa terra, que me obrigou procurar colocá-las, e nenhuma outra pessoa poderia encontrar que pudesse obrigá-las e preservá-las de impiedosa destruição. Elas bem definem uma época e o valor de uma geração de nossos antepassados. Creio que os signatários dos vales da Fábrica de Tecidos anexos, sejam do seu conhecimento, exceção talvez de Bittencourt, meu avô materno que foi sócio da Fabrica de Tecidos do Cedro e gerente da mesma durante vários anos. No fim do Império foi agraciado com a comenda da Ordem da Rosa e com o título de Barão de Gorutuba. Retirando-se da sociedade, adquiriu a Fazenda Campo Grande, da atual cidade de Juramento, e depois de sua morte [foi] vendida para Manuel Batista Braga, recém chegado do estado da Bahia. Por esta região passava a chamada estrada baiana, por onde transmigravam grande parte dos nortistas em busca de terras rurais férteis e frescas a ali que possuíam estas condições. Também lá onde ainda existe bom número de Quadros e Sás se encontra a origem de meu avô.

Um abraço do amigo e admirador
Montes Claros 14 de junho de 1980.
Alpheu Quadros

Veja ilustrações nas páginas 74 e 192.


O ESCRITÓRIO DO MEU PAI

Mistérios e alquimias de um mundo sob o olhar de criança

Geralda Magela de Sena Almeida e Sousa
Cadeira N. 34
Patrono: Eva Bárbara Teixeira de Carvalho

Cresci num tempo em que família era o mundo, circundado pela vizinhança, agregado a uma cidadela pacata. O dia começava cedo e logo era tomado por pequenos afazeres de casa, quase sempre interrompidos pelos insistentes chamados que da rua convocavam para as brincadeiras que só tinham fim com o adentrar da noite, quando à beira das calçadas ainda brincávamos de pique, de roda, de cantar, declamar, contar histórias. Por fim, uma voz com autoridade, soando uma só vez, nos arrebatava cada qual para seu “ninho”.

MEU PAI - CYPRIANO

O escritório do meu pai... Aquela sala, para mim, escondia muitos mistérios. Quantas vezes, durante conversas dele com outros homens sobre viagens e trabalho, pedaços destas eram puxadas pela minha curiosidade de criança, atravessavam a porta entreaberta e transbordavam pelos meus ouvidos a dentro, redesenhadas pela minha imaginação. O medo não fazia parte daquelas conversas. Era combatido e vencido cada dia e noite no seu trabalho mato afora, enfrentando onças, cobras, mosquitos, febres paludes, grileiros e as usuras do bicho-homem. Coragem, responsabilidade, amor pelo trabalho, saudades de casa, fé em Deus, juntamente com a rapadura, a farinha de mandioca e a cabaça d'água eram carregados no alforje. E era o sustento do dia, enquanto se embrenhava com seus camaradas pelas matas em longas e árduas caminhadas, léguas e léguas distante do acampamento que montavam em clareiras que abriam ou das fazendas em que se hospedavam. Autodidata na profissão, que aprendeu não numa sala convencional de aula, mas na lida debaixo do causticante sol do sertão norte mineiro. Subir morro, descer morro, atravessar rios, abrir picadas, riscando limites e marcando o direito dos homens foi seu mister.

Um desbravador!– pensava eu, quando viajando com ele de trem para Curvelo, via-o olhando para a mata fechada e para os morros que ao longe se mostravam através das janelas, dizer com um orgulho que eu percebia, mas ainda não era capaz de entender:” - Olha lá, filha, (e apontava) seu pai passou por ali. Olha! Ali eu bati muita baliza e finquei marcos. Naquela região...” Então os versos de Olavo Bilac que contavam as aventuras do “Caçador das Esmeraldas” e que eu sabia de cor e me levavam por viagens inesquecíveis através das matas, montanhas e rios das Minas Gerais, eu ajuntava ao que via deslizar diante dos meus olhos. Queixo apoiado na janela do trem e com o olhar estendido captando imagens ao longe, eu absorvia as palavras do meu pai falando das suas sagas por terras que naquela época poucos conheciam. Um desbravador! Um bandeirante! – eu concluía maravilhada. “Um capitão do mato!” – diz Rubinho, meu irmão mais novo. Sim, um agrimensor por profissão, um desbravador por paixão pela mata, um capitão do mato por embrenhar-se dias, meses a fio para caçar, encontrar, delimitar, resgatar e registrar direitos de propriedade. Assim era meu pai.

De repente, pela fresta da porta algo cintilava piscando e me chamando para o descobrir. A curiosidade assim aguçada me impelia a parar as brincadeiras em curso e espichar o olhar para o mundo que se escondia atrás daquela porta. Esse era um momento que se repetia toda vez que, correndo ou devagar, eu passava pela porta do escritório onde meu pai trabalhava. Um mundo de adultos, um mundo onde formas, cores e traços habitavam um papel mágico que podia se transformar num pedaço de pano, se fosse deixado dentro d'água. Um papel com o nome curioso de “vegetal”: papel vegetal. Esse papel mágico era estendido sobre uma mesa inclinada que meu pai chamava de “prancheta”. Mais alta que as outras mesas da casa, exigia que eu me colocasse na ponta dos pés para entrever os segredos que sobre ela eram deixados. Até meu pai, para trabalhar ali, precisava sentar-se num banquinho de pernas longas. E para escrever aquelas coisas que só ele e outros adultos entendiam, era necessária uma porção de lápis e “giletes” para afiar, maravilhosamente, os lápis especiais, importados - da John Faber, coloridos por fora e sempre pretos por dentro. Havia ainda umas borrachas azuis, macias, duras, diferentes das que eu prendia na cabeça do lápis e usava na minha escola. E uma porção de lindas varetas coloridas com umas pontas chamadas “penas” que podiam se soltar e, quietinhas a um canto da mesa, esperavam a vez de saltarem do copo onde ficavam para as mãos do mágico agrimensor.

Meu pai calado trabalhava. Eu não dava “nem um pio” para não ter que sair sob a alegação de que ali não era lugar de criança. Imóvel, em pé do lado mais baixo da prancheta, só meus olhos circulavam maravilhados acompanhando o movimento decidido do ir e vir das mãos do meu pai.

Essa era a hora que mais me encantava: a da dança das canetas. Retiradas do cantinho onde eram guardadas, elas eram mergulhadas em uns vidrinhos interessantes, (ora num, ora noutro) de formato curioso, que continham líquidos de cores variadas chamados Nanquim. Depois, cada uma a seu tempo, e obedecendo as ordens das mãos, deixavam traços contínuos, interrompidos, duplos segundo o movimento que faziam, além de uns desenhos que papai chamava de “morros, cerrados, boqueirão” e outros. Aqueles morros em nada se pareciam com os morros que circundavam Montes Claros e que, de cima da goiabeira do nosso quintal, eu admirava à distância.

Mas o grande espetáculo era o dos esquadros e do “aparelho” que girava. Eu ficava à espreita para descobrir o diaque eles seriam tirados do armário. Colocados na prancheta, papai trabalhava com eles por horas a fio. Os esquadros eram uma espécie de régua em forma de triângulos, de três tamanhos diferentes. Das réguas, a mais interessante era uma que tinha três lados, e servia para calcular escalas e era chamado escalímetro. O que isso era, ele explicava com paciência toda vez que eu perguntava, mas eu nunca entendia. E pra fazer de entendida eu ouvia com atenção e logo mudava o assunto para outra coisa.

Quando o dia era do “aparelho estranho” - e que só permitia que eu presenciasse o trabalho com ele de vez em quando e sem pegar, eu sempre saía perturbada, sem entender. Como podia o meu pai fazer contas e desenhos com ele? Como o girar simplesmente o aparelho por sobre o papel podia fazer tudo aquilo? Um dia eu haveria de saber! Mas naquele momento, por mais que ele explicasse, eu pouco entendia. E nem queria. Bastava que me deixasse contemplá-lo manipulando aquela “coisa estranha”, como um Flash Gordon a realizar façanhas não comuns à maioria dos pais que eu conhecia. Depois vim a saber que aquela coisa estranha chamava-se planímetro.

Meu pai era “poderoso, especial” – falava o meu coração. Eu ouvia e em silêncio, feliz, guardava para mim.

O escritório onde meu pai trabalhava era diferente de tudo que eu conhecia. Mais tarde, quando conheci o “Laboratório de Ciências” no Colégio Imaculada Conceição, onde fui estudar, pensei que o escritório do meu pai era um laboratório. Também lá existiam tantas coisas desconhecidas e importantes, guardadas com muito zelo e usadas para um serviço especial aos homens.

Meu pai, para mim, era um cientista que no seu laboratório marcava e demarcava limites e propriedades de terras. Após percorrer e conhecer morros, rios, matas, boqueirões, cerrados, transformava-os em piquetes, linhas, traços e números e registrava-os em “plantas” e relatórios, a fim de permitir o seu uso correto, legal e pacífico. Viagens, conversas, meses debruçado sobre a prancheta e o resultado era entregue num rolo de papel de tamanho variado que eles chamavam Planta. Sempre me chamou a atenção a confiança e satisfação que via no rosto das pessoas que buscavam o serviço encomendado e a alegria a reluzir nos olhos do meu pai. E na postura, pelo dever cumprido com retidão, com que levava as pessoas à porta após entregar o trabalho. Como se fosse hoje o via dar meia volta e adentrar à casa feliz, pleno. Cada trabalho finalizado denotava uma vitória sobrepondo as pressões culturais e interesses individuais. E eu imaginava... Assim como meu pai eram os cientistas.

Ver meu pai trabalhando no seu escritório significava tempos de alegrias e certeza de sua presença entre nós. Nos entremeios do dia e ao cair da tarde, quando cerrava a porta do escritório, sempre podíamos gozar da sua companhia e dos seus alegres movimentos pela casa. Ou observá-lo assentado na porta da rua acompanhando, absorto, a natureza, trocando o cenário para a noite que chegava.

Ter meu pai em casa era sempre muito bom. Mas esse tempo era precedido por longas ausências e saudades: ele ia para o “mato”. Suas saídas e chegadas eram sempre marcantes. Percebíamos a proximidade da viagem quando a rotina da casa se alterava com o ir e vir de providências, com a visita amiúde do Manezinho, seu camarada-mor, anjo de guarda, amigo e outros homens com os quais mantinha intermináveis combinações. O material necessário ia sendo arrumado e ficava esperando num canto do escritório. Brincando pra lá e pra cá, eu prestava atenção no que se ajuntava, sempre me perguntando intrigada – para que serviriam aqueles pedaços de arame de ferro grosso, de uns quinze a vinte centímetros de tamanho, presos uns aos outros por
pequenas argolas e que eram chamados: “corrente”? Reunidos em molho, eram colocados todos numa sacola de lona, própria ao tamanho deles, com uma longa alça para o ombro. Também as balizas (mastros sextavados, pintados de vermelho e branco, com quase dois metros de altura) eram postados à espera. Uma maleta de mão, de couro marrom escuro, levava cadernetas para
apontamentos, documentos e outros objetos pessoais. Fazia parte da tralha e era guardado com muito cuidado no quarto de dormir, hermeticamente fechado numa caixa de madeira: o “aparelho”, conforme papai o chamava. Nesta caixa devia viajar um fantástico segredo, eu imaginava, pela importância e cuidados que a cercavam. Muitos anos depois, fiquei sabendo que o tal aparelho tinha o esquisito nome de teodolito.

Por fim chegava o dia. Meu pai-desbravador colocava suas botas, roupas resistentes e antes de sair se dirigia ao oratório que ficava atrás da porta do seu quarto. Nunca saia sem antes “beijar o santo”. Por alguns instantes, de cabeça baixa rezava. Por fim se ajoelhava, fazia o sinal da cruz e estava pronto. Despedia-se de cada um de nós, colocava nas costas o “aparelho”, que só ele carregava, punha seu chapéu e subia a Rua General Carneiro, onde morávamos, em direção à Estação. Isso quando a viagem era de trem de ferro. Nessas ocasiões não arredávamos o pé da porta. Com o olhar alongado até a linha do trem cortando nossa rua a uns quatro quarteirões acima, ficávamos esperando para vê-lo passar acenando mais uma vez da janela do último vagão. Respondíamos com o coração apertado e junto com mamãe entrávamos para nossa casa. Sabíamos que os próximos dias seriam de saudades, de espera por notícias e por seu retorno.

Sua volta era luz que iluminava e movimentava nossa casa. Papai apesar de sério e tímido estava sempre aberto para brincadeiras que nos alegravam. Ao chegar às vezes estava magro, cansado dos percalços e das viagens que nem sempre eram só de carro ou trem, mas alternadas por percurso a pé ou a cavalo. No meu coração apontava a tristeza por vê-lo chegar abatido mas imediatamente era sacudida para fora pela alegria da sua volta. Meu pai voltou! Não se perdeu no mato! E eu revivia aquela cena do Borba Gato, outro bandeirante que povoava minha imaginação, chegando das bandeiras paulistas que adentravam pela nossa Minas Gerais. Alquebrado, barbudo, não era reconhecido nem pela sua esposa. Ah, mas com meu pai nãoé assim! - meu coração pensava aliviado. Sempre o reconhecíamos, apesar da barba por fazer. Eu corria para o abraço apertado. E mal dava conta de esperá-lo “beijar e agradecer o santo” diante do oratório, que era a primeira coisa que fazia ao chegar. Enquanto esperava, meus olhos perscrutavam os sacos e caixas que chegavam com ele e que traziam as novidades do mato: ninhos, flores, frutos silvestres ou das fazendas, doces e diversas curiosidades recolhidas pelos caminhos percorridos.

Era dia de festa! Meu pai estava em casa novamente! As mágicas e mistérios no seu escritório recomeçariam

CYPRIANO CELESTINO DE ALMEIDA - O AGRIMENSOR

Filho de Christiano Celestino de Almeida e Maria Evangelina Rocha de Almeida, nasceu aos 16 de abril de 1908, na Fazenda Boa Vista, em Jequitaí - na época distrito de Barreiros e pertencendo ao município de Bocaiúva - crescendo às margens dos rios Corrente e Jequitaí.

Em dezembro de 1924, após o falecimento do seu pai ocorrido em 1° de junho de 1920, transferiu-se com sua mãe e irmãos para Montes Claros à procura de novos horizontes...

Casou-se com Ambrosina de Sena Leite, nascida em Morrinhos, hoje Miralta, tendo vindo para Montes Claros após o falecimento do seu pai. Ambrosina era filha do fazendeiro Bernardino Pereira Leite e Antonina de Souza Leite.

Com o nascimento do primeiro filho, Cypriano retornou para Jequitaí, onde andou “batelando” no garimpo. De volta a Montes Claros, ainda procurando rumo, trabalhou na usina de algodão dos Paculdino, à Rua Pires de Albuquerque com Dom Pedro II .

Depois, junto com os irmãos exerceu o ofício de marceneiro, no quintal de sua residência à Rua Dr. Veloso. Após essa ocasião, foi trabalhar como “baliseiro” nos serviços de agrimensura.

Assim, aprendeu o ofício de agrimensor trabalhando com o Doutor Nelson Vianna. Inteligente, curioso, empreendedor, aprendeu a usar o teodolito e com ele nos ombros
fez sua carreira e nome. Nesse ofício, foi toda a sua vida à frente.

Tornou-se conhecido na região por sua capacidade de trabalho como agrimensor e topógrafo.

Trabalhando, no lombo do cavalo ou à pé, desbravou regiões como as de sua terra natal Jequitaí, Francisco Dumont, Dolabela, Coração de Jesus, Brasília de Minas (antiga Contendas), São Francisco, Juramento, Grão Mogol, Porteirinha.

E quando do prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil rumo a Monte Azul acompanhou o trecho trabalhando na região de Sapé,hoje cidade de Capitão Éneas; fazendas na região do Quem-Quem, Janaúba e bem mais adiante, uns 100 quilômetros além, na Cachoeirinha, no Morro do Chapéu, Jaíba, Urucuia e redondezas, indo até Manga, já quase divisa do estado da Bahia.

Faleceu em 12 de maio de 1969, aos 61 anos. E segundo escreveu Netinho, seu filho mais velho, em 1997: Era dia das Mães... Um domingo... Dia de descanso!


CYPRIANO CELESTINO DE ALMEIDA - O AGRIMENSOR

Este texto foi escrito em homenagem ao centenário de seu nascimento.

Abril/2008


NUMISMÁTICA MONTES-CLARENSE


NOTA DE 1000 R. DA FÁBRICA DE TECIDOS RODRIGUES, SOARES, BITTENCOURT, S VELLOZO & COMP.


"BONS VELHOS TEMPOS":
DA CIDADE DE MONTES CLAROS

Gy Reis Gomes Brito
Cadeira N. 97
Patrono: Urbino Vianna

Deixe-me começar a minha colcha de retalhos, falando da importante contribuição da tradição racionalista grego-ocidental nos estudos históricos. Ao longo dos séculos e em seguida sobrevoarei as belas épocas e os bons velhos tempos da cidade de Montes Claros no interior de Minas Gerais.

Ao se empenhar em estar tão bem informado quanto possível a respeito de tudo quanto acontece na ciência moderna e das suas mais recentes revelações, Lévi-straus nos diz:

Creio que há certas coisas que perdemos e que devíamos fazer um esforço para as conquistas de novo, porque não estou seguro de que, no tipo de mundo em que vivemos e com o tipo de pensamento científico a que estamos sujeitos, possamos reconquistar tais coisas como se nunca às tivéssemos perdido; mas podermos tentar tornar-nos conscientes da sua existência e da sua importância. Tenho a sensação de que a ciência moderna, na sua evolução, não se está a afastar destas matérias perdidas, e que, pelo contrário, tenta cada vez mais reintegrá-las no campo da explicação científica. O fosso, a separação real, entre a ciência e aquilo que poderíamos denominar pensamento mitológico, para encontrar um nome, embora não seja exatamente isso. ocorreu nos séculos XVII e XVIII. Por essa altura, com Bacon, Descartes, Newton e outros, tornou-se necessário á ciência levantar-se e afirmar-se contra as velhas gerações de pensamento místico e mítico, e pensou-se então que a ciência só podia existir se voltasse costas ao mundo dos sentidos, o mundo que vemos, cheiramos, saboreamos e percebemos; o mundo sensorial é um mundo, ilusório ao passo que o mundo real seria um mundo de propriedades matemáticas que só podem ser descobertas pelo intelecto e que estão em contradição total com o testemunho dos sentidos. Este movimento foi provavelmente necessário, pois a experiência de, que, graças a esta separação - este cisma, se se quiser -, demonstra-nos o pensamento científico encontrou condições para se autoconstituir. (LEVI-STRAUSS, 19?, p. 17-39).

Sabemos que as ciências humanas tiveram dificuldades para se afirmarem neste universo intelectual. A produção historiográfica positivista do século XIX se encontrava impregnada, circunscrita pelos postulados lógico-formais. Sendo assim, incapaz de dar conta da realidade humana em suas múltiplas dimensões.

A construção desse processo de conhecimento da realidade exterior no século XIX conferiu demasiada primária ao racional; resultando na segregação de tudo o que não se explicasse no interior do rigor científico-metodológico. Absolutamente, não possuía status de ciência. Mesmo assim a história trilhou no século XIX, dando sua contribuição com a historiografia positivista procurando estabelecer-se nesses limites.

O século XX marca de fato profundas alterações na historiografia, sem se distanciar dos postulados lógico-formais, alargar seus horizontes incorporando novos objetos, procurando compreender o homem e suas ações também em seu universo cotidiano, afetivo e psíquico.

E sabido que após Descartes, o saber racional se separou do imaginário, propiciando o paradoxo entre o cientificismo, como critério de verdade, ao ilusório da ficção.

Conforme Pesavento, o racionalismo cartesiano instituiu-se como método universal de uma pedagogia do saber cientifico, podendo mesmo ser dito que os renomados estágios evolutivos positivistas são etapas de extinção do simbólico. O saber científico, única fonte do conhecimento deveria se despojar da imaginação deformadora. Não é por acaso que, no senso comum o imaginário aparece como algo inventado, fantasioso e forçosamente, "não serio", porque não científico.

Todavia, se o século XIX marcou um ápice do pensamento racional, tal como vinha se desenvolvendo desde o século XVIII, esta mesma sociedade, norteada pelo cientificismo e pelas imagens produzidas pêlos avanços da técnica, voltou-se contra os seus pressupostos. Esta postura de uma certa forma iconoclasta com relação a seus valores foi capaz de resgatar a importância das imagens na vida mental através da contribuição da psicanálise e da etnologia. (PESAVENTO, 1995, p. 9-27).

Lembrando Lévi-strauss, na introduqão deste trabalho fica notório a importância que o mesmo dar a este cisma a esta separação, como fundamental na autoconstituição do pensamento científico. Segundo, Gilbert Durand, as duas vertentes apesar de romperem com largos séculos de coerção contra o imaginário, instauraram uma hermenêutica redutiva: Freud, ao estabelecer o determinismo da libido sobre o psíquico, e a antropologia social, com Malinowski, Domezil, Lévi-strauss, ao cingir os símbolos à estrutura social. O que se quer chamar a atenção é que, dialeticamente, os caminhos contraditórios da razão levaram ao resgate de dimensões não propriamente racionais. Mas tais investidas - psicanalíticas e antropológicas - seriam alheias aos historiadores, ainda por longo tempo presos às correntes anteriormente mencionadas: o historicismo, o positivismo, o marxismo. As próprias análises de Bachelard, na década de 40, que representaram a "grande virada" epistemológicas em direção ao imaginário, não tiveram grande repercussão junto à história. Coube ao autor a iniciativa de tentar
reconciliar a ciência com o sonho, entendendo que, na própria inovação tecnológica, está presente a potência criadora da imaginação. (PESAVENTO, 1995, p. 12).

E somente com E. P. Thompson, Christopher Hill, Raymond Williams, como grandes expressões do marxismo e também a escola francesa dos Annales, é que os historiadores dão definitivamente o primeiro chute em direção a uma história social, tomada cada vez mais cultural.

Neste novo caminhar, foi possível acalentar os desencantamentos com a rigidez e o economicismo de um marxismo ortodoxo e as velhas concepções positivistas de uma história factual, política e diplomática. Esses novos pensadores avançam nesta trilha, dando uma conotação eficaz ao afirmar a não existências de verdades absolutas, recuando assim de uma posição cientificista herdada do século XIX.

Aos anos 60 e 70, restabelece o "ofício do historiador", estimula e amplia novos olhares para com a complexidade do real, da ênfase e desencadeia fôlegos, fortalecendo os mestres da narrativa, dando-lhes, instrumentos, munindo-os de um método, resgatando da documentação empírica as "chaves" para recompor o encadeamento das tramas sociais. No decorrer dos anos 80, mergulha-se na conhecida "nova história cultural", arregimentada com novos objetos de estudo: mentalidades, valores, crenças, mitos, representações coletivas traduzidas na arte, literatura, formas institucionais. Hoje em dia, as abordagens das representações e do imaginário compõem a rotina dos historiadores e demais pesquisadores das ciências afins. Dispensa-nos a conotação ou alguma falsa interpretação de modismo. De fato, a história que não estabelece como pressupostos básicos o imaginário e as representações é incompleta, tem vida curta, não realiza satisfatoriamente seus objetivos. A estratégia da abordagem conceituai poderia começar com a noção de representação. Diz Lê Goff, é tradução mental de uma realidade exterior percebida, liga-se ao processo de abstração e caracteriza-se por seu caráter essencialmente intelectual. As representações são reais, são conferidoras de sentido, não se trata de abstrações, ilusórias ou deformadoras. Chartier propõe três conceitos básicos para compreender o "mundo representado": a representação, a apropriação e a prática. Essas três noções compõem um todo conceituai. Elas se entrelaçam, interpenetram-se e se completam num movimento contínuo. Assim, o real, do ponto de vista histórico, existe a partir d o m o m e n t o e m q u e é r e p r e s e n t a d o . A s representações/apropriações constroem sentidos, atuam sobre o real, constituem o real, materializa-se nas práticas sociais. Nessa perspectiva, são as representações que conferem objetividade às estruturas. Logo, seriam falsos os debates em torno da clivagem entre objetividade das representações. (PESAVENTO, 1995, p. 9-27).

A partir da leitura de Chartier, entende-se, que não há oposição antitética - entre mundo real e mundo imaginário. O discurso e a imagem não são quaisquer reflexos parados da realidade social. São antes de tudo, instrumentos que podem constituir-se de poder e transformação da realidade social.

Para Bourdieu, a instância das representações é, em si, um campo de manifestação de lutas sociais e de um jogo de poder. Ainda para este autor, é preciso ultrapassar a alternativa economicista/culturalista, que ou vê o objeto simbólico como reflexo mecânico do real ou vê como uma finalidade em si. Segundo o autor, nada de menos inocente que a questão, que divide o mundo intelectual, de saber se devem entrar no sistema de critérios não só as propriedades "objetivas", mas também as "subjetivas", quer dizer, as representações que os agentes sociais se fazem da realidade e que contribuem para a realidade das divisões. Para Bourdieu, o mundo social é também representações e vontade, de todo discurso contém, em si, estratégias de interesses determinados. A autoridade de um discurso e a sua eficácia em termos de dominação simbólica vêm de fora: a palavra concentra o capital simbólico acumulado pelo grupo que o enuncia e pretende agir sobre o real, agindo sobre a representação deste real. Para Julia Kristeva, o que justamente nos atrai, no estudo do imaginário é esta ambivalência e esta melange entre subjetivo e objetivo, este quiasma entre a força do ser e a espiritualidade da idéia. È próprio do imaginário passar do simbólico ao físico. E ser duas coisas ao mesmo tempo, processo este que, indo da sensação à idéia, é a força de sua sedução. Já Darnton, historiador com nítida influência da antropologia, definiu a sua tarefa como uma busca de significados, mergulhando na dimensão social dos textos e fazendo novas perguntas ao material antigo. Em obra bastante conhecida, Darnton se movimenta com desenvoltura do texto ao contexto e deste novamente ao texto. (JATAHY, 19?, p. 18-22).

De olhar mágico, percebemos que o imaginário não é um ensaio do real. Mas um chamar de algum lugar (evocação) que dá sentido as coisas. A imaginação_ não é conhecimento; não sendo conhecimento os saberes não se opõem: imaginário versus racional, mas na gênese do conhecimento científico está a imaginação criadora.

Conforme Pesavento, a função criadora do imaginário é também resgatada por Bazcko, quando se refere ao processo de formação de idéias - imagens de representação coletiva": (...) inventadas e elaboradas com materiais tirados de fundo simbólico, elas têm uma realidade específica que reside na sua existência mesma, no seu impacto variável sobre as mentalidades e os comportamentos coletivos nas funções múltiplas que elas exercem na vida social".

Na verdade, a concepção do imaginário como função criadora se constrói pela via simbólica, que expressa a vontade de reconstruir o real num universo paralelo de sinais. Para Castoriadis, a história é impossível/inconcebível fora da imaginação produtiva ou criadora a que ele chama de imaginário radical. A noção de símbolos é, pois, central e se encontra ligada à de representação: "os símbolos podem ser considerados derivados dos signos, quer dizer, do conjunto de elementos conhecíveis e repertoriáveis mas que, ao mesmo tempo, se propõem como fantasmas ao significado que retém uma parte do objeto que designam".

Após esse breve sobrevôo no desenvolvimento do pensamento histórico, dando relevância aos conceitos de imaginário e de representação; faremos referências agora a respeito da produção e colaboração da obra de Raoul Girardet, que analisa o imaginário político contemporâneo sobre as mitologias políticas principais na Europa nos dois últimos séculos e em seguida daremos ênfase ao mito da idade de ouro, para discutirmos um pouco os bons velhos tempos da cidade de Montes Claros, no interior do norte de Minas.

Segundo Girardet, os três conceitos de mito - o mito como narrativa explicativa da organização social, o mito como ilusão e camuflagem e o mito como apelo ao movimento e a ação - aplicam-se ao mito político que além deles, incorpora a realidade psicológica dos indivíduos. O autor identifica quatro grandes conjuntos mitológicos políticos contemporâneos: "a conspiração", "o salvador", "a idade de ouro" e "a unidade". Diz o autor, que esses mitos saem à flor da pele nos momentos difíceis de crises sociais, de identidade e legitimidade. Quando os referenciais se perdem eles surgem como elemento reestruturado da ordem, como o ordenador do caos.

TEMPOS DE ANTES: MONTES CLAROS

Diz Girardet, "tempo de antes" é aqui, em primeiro lugar, a propriedade, a barreira das colinas que fecha seu horizonte, a segurança vigorosa das paredes e dos tetos, a autoridade patriarcal do pai estendida sobre todo um pedaço de terra. É também a perenidade de um ritmo de vida confundido com a sucessão dos trabalhos e das estações, as lavouras, as semeaduras, as colheitas. E é ainda a intimidade protetora de um grupo social fechado, solidário, estritamente hierarquizado, o carroceiro, os pastores, os ceifeiros, as respigadoras, a própria imagem de uma ordem, de uma sociedade, de um tipo de civilização de que a criança do mas du juge cantou mais tarde a glória e de que sonhou assegurar a continuidade. (GIRARDET, 1987).

Ao trabalhar o mito da idade de ouro, Girardet evidencia as imagens de um passado tornado lenda, visões de um presente e de que futuro definido em função do que foi ou do que se supõe ter sido. Esta é a verdadeira originalidade do pensamento mitológico é a criação da imagem surgida de uma lógica racional. Há uma relação entre o problema e o "herói". Há uma primazia da emoção sobre a racionalidade. Crer é uma atitude da mente contrastando com o saber.

Antes de aprofundarmos no pensamento de Girardet a respeito dos "tempos de antes" faz-se necessário apropriarmos de algumas informações breves e pertinentes no que se refere a mito:

"É uma forma de as sociedades espelharem suas contradições, exprimem seus paradoxos, dúvidas e inquietações" "São perguntas, problemas, paradoxos e dúvidas, com os quais uma sociedade se debate e para os quais o mito é um instrumento de expressão." (ROCHA, 1994). "Narrativa dos tempos fabulosos ou heróicos. Representação de fatos ou personagens reais, exagerada pela imaginação popular, pela tradição, etc. Idéia falsa, sem correspondente na realidade". (AURÉLIO).

Para Bourdieu, imagens e discursos sobre o real não são exatamente o real ou, em outras palavras, não são expressões literais da realidade, como um fiel espelho. Há uma década entre a concretude das condições objetivas e a representação que dela se faz. Como afirma Bourdieu, as representações mentais envolvem atos de apreciação, conhecimento e reconhecimento e constituem um campo onde os agentes sociais investem seus interesses e sua bagagem cultural. As representações objetais, expressas em coisas ou atos, são produto de estratégias de interesse e manipulação. Ou seja, no domínio da representação as coisas ditas, pensadas e expressas têm um outro sentido além daquele manifesto. Enquanto representação do real, o imaginário é sempre referência a um "outro" ausente. O imaginário enuncia, se reporta e evoca outra coisa não explicita e não presente. Este processo, portanto, envolve a relação que se estabelece entre significantes (imagens, palavras) com os seus significados (representações, significações), processo este que envolve uma dimensão simbólica. (PESAVENTO, 1995, p. 15).

Voltando a Bourdieu, enquanto representação do real, o imaginário é sempre referência a um "outro ausente". Sendo assim, "tempos de Antes", se remete há tempos bons, como o da: segurança propriedade, das estações favoráveis, colheitas, intimidade protetora de um grupo social fechado, de uma ordem, de um tipo de civilização. Como é o caso desse que nos referimos anteriormente, sendo efetivamente vividos antes de Ter sido sonhados; este exercício é um grande recurso no trabalho de inflexão, seleção ou de transmutação que é o da lembrança. Outros, certamente os mais numerosos, escapam à memória individual por já não pertencerem senão à da história, ou do que passa por ser a memória da história.

Muitas vezes nos deparamos com variadas referências do passado, mesmo sem tê-los vividos, mas seu poder evocador é a busca de um modelo, de um arquétipo, pois a necessidade fora do tempo dar-lhe um valor a mais de exemplariedade. O tempo de antes nos aparece freqüentemente oposto à imagem de um presente sentido e descrito como um momento de tristeza e de decadência, ergue-se o absoluto de um passado de plenitude e de luz. Resultado quase inevitável: cristalizando ao seu redor todos os impulsos, todos os poderes do sonho, a representação do "tempo de antes" tornou-se mito. E mito no sentido mais completo do termo: ao mesmo tempo ficção, sistema de explicação e mensagem mobilizadora. Nessa nebulosa complexa, movediça, que é a do imaginário político, não há no final das contas, muita constelação mitológica mais constante, mais intensamente presente que a da idade de ouro. "Os bons velhos tempos" ou as "belas épocas". E não se trata, apenas aqui dessa função imemorial de criatividade legendária que os "antigos" sempre exerceram, evocando o tempo passado de sua juventude. Em nossas sociedades ditas modernas, aparentemente dominadas pelo ritmo cada vez mais rápido da mudança, não se poderia, aliás, negligenciar esse frémito de emoção, de caráter estético e sentimental ao mesmo tempo, que parece cada vez mais ligar-se aos restos aos destroços recuperados de um passado ainda surpreendentemente próximo: instrumentos, ferramentas, máquinas que datam, das primeiras épocas da revolução industrial, por vezes mesmo mal saídos de uso, tornam-se objetos de pesquisa e de devoção, ganham lugar nesse museu imenso e multiforme que uma certa religiosidade mantém hoje em relação ao efémero mais imediato. (GIRARDET, 97-98).

A PUREZA DAS ORIGENS

Dias inauditos! O bom, o belo, o justo fluíam na torrente, estremeciam no arbusto. ... nada tinha mácula e nada tinha sulco; dias puros! Nada sangrava por unha e por dente o animal feliz era a inocência rondando. (GIRARDET, 106).

"É Hugo quem, em La Légende d-es Siècles, evoca o éden, o paraíso perdido,"os primeiros tempos do globo", quando nas brenhas "o cordeiro pastava com o lobo". Tempo de felicidade de uma graça ainda não rompida, do brilho das primeiras auroras". (Girardet)

Não pretendemos evocar um tempo tão distante; das auroras, do primeiro sol, das primeiras manhãs montes-clarenses, mas alguns "bons velhos tempos". Os tempos dos velhos carrosde-boi a cantarolar pelos becos e ruas numa magia de encantos; tempos das carroças e carrocinhas do leite a buzinar, anunciando a chegada, assanhando à garotada do lugar, que a noite mal dormiam, e ficavam em vigília à espera do novo dia, para em seguida ouvir a buzina da carrocinha do leite; tempos do velho mercado na praça Dr. Carlos, onde aos sábados os comerciantes vendiam trocavam os produtos hortifrutigranjeiros que vinham da roça; também era o lugar ideal de encontro dos amigos para trocas de palavras; palavras amigas, palavras alegres e `as vezes tristes; ali era aos sábados o pulmão da pequena cidade, onde feirantes e comerciantes negociavam seus produtos; ali era o cantinho dos mascates, alfaiates, vendeiros, barbeiros, professores, médicos, donas-de-casa e até o bispo de vida atribulada e outros.

O tempo da Praça da Matriz, com suas missas aos domingos de manhã na Igreja de São José; as procissões do Senhor Morto, os grupos de jovens cristãos, os grupos de oração as confrarias e os vicentinos. Tempos de D. João Antônio Pimenta, D. José Alves Trindade, Pe. Dudu, Pe. Janjão, Pe. Oswaido, Pe. João Fio, Pe. Joaquim e Pe. Tadeu. Era o tempo do coreto da matriz, com seus pássaros a gorjear; os idosos na praça evocando ainda mais outros tempos, tempos inauditos.

Ah! Montes Claros!!! Montes Claros, de Tuia, Betão, Belo do Marimbondão, irmã beata, galinheiro, Mila Doida, e tantos Outros.

Montes Claros, dos catopês, marujos e caboclinhos; da festa do divino, de Nossa Senhora do Rosário. Montes Claros da calmaria, onde todos se conheciam, até por apelido.

Montes Claros era rainha e quis virar princesa, e virou. Chegam as estradas, o trem de ferro em 1926, e com eles, o progresso. Através de alguns textos jornalísticos, procuraremos evidenciar esses acontecimentos que influenciaram mudanças consideráveis no cotidiano das famílias da cidade de Montes Claros.


ALGUNS NOMES QUE FICARAM
OS DOIS PRIMEIROS BISPOS - DOIS MAGISTRADOS

Os dois primeiros bispos - D. João Antônio Pimenta e D. Aristides Porto, que têm os seus nomes guardados com carinho - dormem na terra montes-clarense. De um padre de batina branca - cônego Carlos Vincart - todos conservam a recordação de um espírito esclarecido e empreendedor. Luís Pires e Francisco Ribeiro - lições de trabalho. Olinto Martins foi Juiz Municipal. Diretor da Escola Normal deixou uma tradição de inteligência e dignidade. Doutor Bessoni - José Bessoni de Oliveira Andrade - era Juiz de direito. Modelo de correção moral. (Revista Montes Claros em Foco, 1957).

"Povo. meu irmão" Os discursos de ontem, em Montes Claros

- Povo, meu irmão!

Atenção, muita atenção. O Major Honor Sarmento está começando um discurso. Fala da sacada do sobrado ilustre - alma e coração da cidade, testemunha de episódios históricos - que o Coronel Joaquim José da Costa.

Estamos em 1924. O discurso é uma saudação a Francisco Sá, ministro da viação, que visita, pela primeira vez, a cidade. Dois anos depois, chegaria a estrada de ferro - que Montes Claros lhe ficaria a dever.

Na sua volta, em setembro de 1926 - dentro do primeiro trem da central que chegou à cidade -foi ainda Honor Sarmento que o saudou.

Por especial delegação do Ministro Francisco Sá - que era o maior orador do Brasil- o agradecimento foi feito por Milton Prates, seu oficial de gabinete, em belas e comovidas palavras.

Povo, meu irmão!

Honor Sarmento era dos oradores da cidade. O farmacêutico Antônio Ferreira de Oliveira, José Correia Machado, Teodomiro Paulino, Alfredo Coutinho, Antônio Augusto Spyer, José Tomás de Oliveira, Antônio Prates Sobrinho, também faziam discursos, muito apreciados. . (Revista Montes Claros em Foco, 1957, p. 15).


CAMILO PRATES

O bonde vai deixando o tabuleiro, no largo da carioca, no Rio de Janeiro. Entra apressado na Rua Senador Dantas. Logo adiante, uma velha placa amarela, pregada num pequeno sobrado, volta o ponteiro o dias mortos.

É o número 31. E está escrito: - "Hotel Continental". Em toda parte do Brasil, bem longe do Rio, haverá sempre quem saiba de cor o endereço de certa rua da grande cidade, onde mora um amigo querido, ao qual todos escrevem com freqüência.

Para muitos que viviam na boa Montes Claros de quarenta anos atrás, o Rio era apenas aquela indicação simpática: -"Hotel Continental", rua Senador Dantas, 31". Ali morava Camilo Prates, durante a temporada parlamentar. Enquanto o bonde passa, a imaginação trabalha. O tempo recua. Uma figura aparece, generosa e valente. No tranqüilo Rio de 1915, o Deputado Camilo Prates sai para a Câmara. Mas, os seus olhos
mal percebem a paisagem urbana. O pensamento está longe. O sertanejo evoca o pé de serra, o riacho, o campo de vegetação rala e ondulante - onde moram as perdizes e as cordonas - que ele em breve irá percorrer a cavalo, no longo percurso da estrada de ferro à sua cidade natal.

Dentro daquele mineiro, bate um grande e nobre coração. É compreensivo e justo. No tempo do Império, ele já servia, devotamente à sua terra na Assembléia Provincial. Constituinte Mineiro, assinou a carta política de 1891. Professor, advogado, Senador Estadual, foi Deputado Federal durante quase vinte anos - até 1930 - tendo exercido o mandato legislativo com brilho, eficiência e exemplar dignidade.

A sua alma e seu espírito não envelheceram. Aos oitenta anos, em meio de gente nova, Camilo Prates continuava a ser o mesmo de sempre - o mais moço entre os jovens que o cercavam.

A placa amarela do velho hotel desperta antigas lembranças. Há um instante de ternura. O amigo está morto. Mas, é como se ele surgisse, acolhedor e ameno, na solidão da grande cidade. (Revista Montes Claros em Foco, 1957, p. 13).


APROVADA IMPORTANTE EMENDA

Ainda recentemente, de autoria do ilustre Deputado José Esteves Rodrigues, foi apresentada na Câmara Federal uma importante emenda de número 323, relacionada com obras rodoviárias em projeto. A referida emenda, já aprovada, tem grande significado para Montes Claros e Toda esta região, desde que se refere à continuação da BR-3 para o norte do Brasil, obra já em execução.

Através da emenda do Deputado mineiro foi concedida a verba de 30 milhões de cruzeiros para o trecho Curvelo-Montes Claros, que inclusive deverá ser pavimentado, proporcionando assim, aos passageiros e veículos que por ele transitam excelentes condições viagem.

Na sua justificativa o Deputado Esteves Rodrigues salienta:

- O prosseguimento da BR-3 de Belo Horizonte a Juazeiro, na opinião do saudoso Edison Passos, o notável engenheiro que presidiu a comissão transportes da Câmara, tendo ainda relatado o plano nacional de viação, quando opinou sobre a emenda n° 38 de nossa autoria, pode ser considerado o eixo do sistema de acesso a Rio São Francisco, e permitirá, conjugada com outras ligações do sistema nacional, a ligação rodoviária do Rio Grande do Sul a Belém do Pará, servindo a todas as capitais (...). (Revista Montes Claros em Foco, 1957, p. 14).

“Que formidável coisa boa!”

Foi assim que Silvio Teixeira, em nome das ruas de baixo, saudou o desabamento do mercado que estava sendo construído na parte de cima da cidade.

A vida era sossegada e sem problemas.

No fim do século, as construções foram aumentando mais depressa.

Montes Claros crescia...

Surgiam, então, ideias líricas. Na fachada de uma casa espaçosa, acolhedora e simpática, que ficava no começo da Rua Direita, foram esculpidas uma rosa e duas chaves.

Era o nome da dona da casa - Rosa Chaves, a velha e querida mestra.

A edificação do mercado municipal, há quase sessenta anos passados na parte de cima da cidade, foi um golpe nas ruas de baixo.

No correr da construção, desabou o mercado.

Que formidável coisa boa!

Foi o que escreveu no eu pequeno caderno de notas o velho comerciante Silvio Teixeira, que habitava uma das ruas de baixo, e assim registrou com alegria o acontecimento.

O mito do progresso chega a Montes Claros, rompem as cirandas e a vida coletiva. Girardet nos alerta:

É com particular atenção que é preciso registrar esse anátema lançado sobre a cidade - a grande cidade, a cidade moderna, captadora de energias, redutora das almas e corrupção dos corpos. Entre tantas vozes consagradas à evocação das épocas desaparecidas, seria sem dúvida muito pouco convincente ignorar as diferenças de tempos de referência histórica, assim como negligenciar as aposições de tonalidade ideológica. Para além dessas diferenças e para além dessas aposições, não se poderia, contudo, deixar de sublinhar esse fator decisivo de permanência que representa a denúncia de um mesmo tipo de sociedade: o tipo de sociedade ao qual se supõe corresponder, precisamente, a imagem da grande cidade moderna, apresentada como um entreposto de riquezas sempre renovadas, uma rede incessante de trocas de tráficos. Organização coletiva concebida como inteiramente fundada na procura do lucro, inteiramente regida pelas exclusivas leis do mercado, é pelo qualitativo de "mercantil" que essa sociedade logo será designada. E é enquanto sociedade "mercantil" que não cessará de ser recusada. (Revista Montes Claros em Foco, 1957, p. 115).

A rápida passagem de uma comunidade agrária para uma comunidade urbana, como a da cidade de Montes Claros, com certeza traria transformações substanciais nos modos de vida.


COMUNIDADE E URBANIZAÇÃO

A Emergência e o Crescimento das Cidades.

Segundo Turner Jonathan, um dos efeitos das migrações internas e da migração é aumentar a taxa de urbanização, ou a proporção da população que vive em comunidades densamente estabelecidas (Frisbie e Kasarda, 1988). Estruturas primitivas de comunidade mal puderam predizer o que planejariam quando as populações crescessem e começassem a migrar de lugar para lugar (Sjoboerg, 1960). (...) Mas, até mesmo quando as cidades cresceram com a agricultura, elas não eram grandes para os padrões atuais; poucas excediam 100.000 habitantes e menos do que 10% da população vivia nelas. (...) com a industrialização, entretanto, a dimensão e natureza das cidades e as relações entre elas foram drasticamente transformadas. (...) com a industrialização, as cidades tornaram-se estruturas empresariais, que ajudavam a estimular a mão-de-obra, o capital e a tecnologia junto com fábricas construídas perto de fontes de recursos e rotas de transporte.

As cidades sempre atraíram os migrantes, mas a industrialização acelerou esse processo, embora fatores associados à falta de oportunidades e miséria dos lavradores
tenham sido certamente um grande impulso (de fato, visto que as primeiras cidades, industriais eram lugares muito desagradáveis, as pessoas que migravam para elas deviam estar em situação desesperadoras. (TURNER, 1999).

Norte e Vale concentram problemas sociais.

Favelas retraíam a fragilidade na estrutura das grandes cidades como Montes Claros. Os pólos da carência em Minas. O norte e o Vale do Jequitinhonha abrigam a maior porcentagem dos problemas sociais e econômicos do Estado. As cidades-pólo, Montes Claros e Teófilo Otoni atraem os retirantes de outras cidades desta região e até mesma do sul da Bahia, que apresenta o mesmo aspecto físico e político. Para se Ter uma idéia, o número de flagelados da seca que assola o norte de Minas é coincidentemente o mesmo número de habitantes de Montes Claros: 271 mil. A dengue, doença que preocupa não só o norte como todo o Estado, já foi detectada em mais de 5.500 pessoas. E para cada caso registrado os especialistas em saúde fazem a proporção de 10 suspeitos.

Hipoteticamente o mal da seca ataca uma cidade como Montes Claros. Ou como se dengue atacasse 20% da população Montes-clarense. (Jornal de Notícias, 22 maio 98).



ZONA RURAL DO NORTE DE MINAS ESTA ABAIXO DA
LINHA DE POBREZA DO PAÍS

O Norte de Minas faz parte da classe rural mais pobre do Brasil, segundo recente levantamento feito por um grupo de pesquisadores da universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, encomendado pelo Ministério de política fundiária. A região nordeste de Minas compõem a classe seis, que lidera as quatro classes mais pobre do país, seguida pela classe cinco (parte do nordeste de Minas, Acre, e Norte do Espírito Santo); classe quatro (Paraná, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Goiás e toda a região norte) e três (todos os estados do sul). (Jornal do Norte, 26 nov.19 98).

Fica-nos uma inquietação, será que quanto mais acelera o processo de desenvolvimento nas cidades-pólo como Montes Claros, o desejo de evocação da "idade de ouro" se toma presente? Diz Girardet, e é enquanto sociedade "mercantil" que não cessará de ser recusada.

Sabemos que, cada sociedade define e elabora uma imagem do espaço onde vive, dando a ela um conjunto de significados e sentidos. E assim que se torna possível interligar as expressões imaginárias da sociedade, observando as práticas comuns de adesão da esfera da cultura, como a totalidade da forma de vida da sociedade, em suas dimensões material e intelectual.

Só assim compreenderemos como a cultura de um povo é importante e se toma mediadora das novas formas de viver no mundo moderno, possibilitando a emergência de novas interpretações, indicando novos caminhos para as modificações que se operam na existência em sociedade.

Por isso, para concretização dos nossos escritos, e de uma abordagem mais qualificada a respeito dos "tempos de antes" da cidade de Montes Claros, tornou-se necessário, não apenas dialogar ou citar alguns autores; mas foi preciso fazer uma conexão com a "idade de ouro" de Raoul Girardet, constituindo assim em uma importante referência, para narrarmos os "bons velhos tempos" montesclarense.

Na "idade de ouro", Girardet refere-se ao tempo de antes, como o tempo da harmonia social, tempo lendário de caráter maravilhoso. Recupera o mito como mensagem mobilizadora para o tempo presente. Pois para ele o tempo de antes nos aparece freqüentemente oposto à imagem de um presente sentido e descrito como um momento de tristeza e de decadência. O tempo de hoje é o tempo também de degradação, de crise. Crise econômica e social, onde os valores individuais subordinam o coletivo. Tempo de hoje, são retratados nos outdoors, jornais, TV e nas ruas, como o tempo de insegurança; violência em todos os níveis.

Sendo assim, fazer referência a Girardet e escolher o mito da "idade de ouro" como norteador de nosso "artigo", é simplesmente reconhecer que o "tempo de antes" por nós abordados aqui se integra na própria análise de Girardet, quando o mesmo expõe ao longo do texto da "idade de ouro" a questão do futuro se apoiando no passado, presente, futuro definidos em função do que foi. Valores resgatados, como da inocência, pureza, amizade, solidariedade, comunhão, nossas origens, diante dos "costumes corrompidos deste tempo", recupera a festa, como comunhão social, fusão dos espíritos, dos corações. Segundo Girardet, a festa enquanto comunhão social está
intimamente confundida com uma outra aspiração, de forte exigência, que é a da segurança, edificação do modelo de comunidade fechada, protetora, sonho de permanência.

"... A edificação desse mito se contrapõe uma realidade de uma história em movimento, marcada por rupturas bruscas. Nesse sentido existe uma noção de recusa da modernidade..." (GIRARDET, p. 97-133).

Para Girardet, o mito da idade de ouro surge sempre como forma de resistência nos momentos em que a evolução econômica e social tende a precipitar-se. Quando normalmente o processo de mudança toma impulsos, e os antigos equilíbrios encontram-se freqüentemente questionados.


BIBLIOGRAFIA

AURÉLIO, Buarque H. F., JE.M.M. Editores, 1986 GIRARDET, Raoul. Mitos e Mitologias Políticas. São Paulo: Cia das Letras, tradução: Maria Lúcia Machado, 1987.

GIRARDET, Raoul. Mitos e Mitologias Políticas. Maria Lúcia Machado (trad.).

São Paulo: Cia. das Letras, 1987. p. 97-133.

Jornal de Notícias, 22-5-98.

Jornal do Norte, 26-11-98.

LEVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa: edições 70 s/d., Cap. I, e H, p. 17-39

MEKIE Pereira, Laurindo. O Imaginário Coronelista na Política Montesclarense. 1940 e 1950, Novo Dicionário da Língua Portuguesa.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário, 1995.

Revista Brasileira de História, v. 15, n. 29. p. 9-27.

Revista Brasileira de História. São Paulo: Vol.15, n° 29, 1995 p. 9-27.

Revista Montes Claros em foco, julho, p. 13, 1957

Revista Montes Claros em foco, julho, p. 15, 1957.

Revista Montes Claros em foco, n° 6, janeiro de 1958, p. 14

Revista Montes Claros em foco, p. 115.

ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é Mito. São Paulo: Brasiliense, 1994

TURNER H. Jonathan. Sociologia - conceitos e aplicações. Tradução: Márcia Marques Gomes Nauas. Makron Books, 1999.


O MILAGRE DO OURO BRANCO

Haroldo Lívio
Cadeira N. 82
Patrono: Nelson Viana

Pelo conhecimento que a ciência tem das forças da natureza, principalmente no campo da meteorologia, não poderia haver lavoura de algodão, na zona produtora do Norte de
Minas, neste ano agrícola 82/83. Porém, graças ao instinto de sobrevivência que empurra o homem do sertão, na luta desigual contra o clima hostil, pode-se registrar que está sendo colhida, nos algodoais que se estendem de Porteirinha até Guanambi, já na Bahia, uma das maiores e melhores safras dos últimos anos.

Essa colheita abundante e de produto de ótima qualidade para a indústria têxtil, segundo o testemunho dos radiantes plantadores da região, pode ser considerada como o verdadeiro milagre do ouro branco; e há razões de sobra para se crer que pode ter havido, de fato, uma benéfica intercessão do céu em favor do lavrador norte-mineiro, que plantou a semente de algodão fora da quadra tradicional fixada no calendário agrícola. De outro modo, não dá para entender, racionalmente, o que aconteceu com a cotonicultura.


SECA

Realmente, se hoje temos o quadro econômico de uma safra alvissareira, exatamente há seis meses, em dezembro de 1982, ainda vivíamos, nos municípios mineiros do Polígono das Secas, deprimente situação de calamidade pública, em face de prolongada estiagem que se abateu sobre esta área problemática do estado.

As chuvas de fim de ano, de que tanto depende a economia rural da região, habitualmente esperadas para o limiar de novembro, ainda não haviam caído. Os índices de precipitação pluviométrica achavam-se no ponto zero. E as chuvas de fim de ano, que não podem faltar, nem sequer haviam dado o ar de sua graça, nas primeiras águas tradicionais, do Dia de São Miguel, em setembro, e de Todos os Santos, que são tidas como sinais positivos de inverno.

A classe ruralista espichava o pescoço para cima, esperando o primeiro pingo d água, como na triste cantiga, enquanto se confirmava a instalação de outra seca medonha no Norte de Minas, com maus presságios de carestia, falta de comida, mais desemprego e êxodo rural. Os prejuízos se acumulavam, amedrontavam as autoridades públicas. Ao mesmo tempo em que o sol inclemente esterilizava o chão, milhares de cabeças de gado morriam de fome e sede.

O governo estadual decretou estado de emergência nos municípios assolados pela estiagem, tomou providências preventivas e o próprio governador Francelino Pereira visitou a região, nos pontos críticos, em missão humanitária de socorro e solidariedade às vítimas do flagelo. Parecia que desta vez estava tudo perdido, com a débil economia regional à beira da bancarrota. Era a seca devastadora.


MILAGRE

Entretanto, quando se esvaíam as derradeiras esperanças de salvação, por falta de sinal de chuva, fomos salvos pelo milagre do natal. Na noite santa da vinda do Salvador, nuvens escuras toldaram o céu azul de verão, o teto baixou e uma garoa mansa começou a molhar a terra ressequida. A chuva fina engrossou, transformou-se em chuva geral, encharcou os campos e entrou pelo veranico de janeiro adentro.
Renovado de esperanças, o lavrador acreditou na constância da chuva e decidiu plantar a roça, com o atraso de dois meses. Consultados, os agrônomos da Emater, prudentemente, e temendo prejuízo ainda maior para os plantadores, desaconselharam a semeadura, com justo motivo e conhecimento de ofício, uma vez que não se pode prever o tempo de duração de uma chuva temporã, principalmente em janeiro, que é mês de sol.

Os bancos do crédito rural, baseados no parecer técnico, pagaram o seguro dos trabalhos culturais já feitos nos campos lavrados e suspenderam o financiamento do plantio, com receio de que os agricultores estivessem enganosamente empolgados com uma chuva que poderia ser passageira. ...E as chuvas continuaram caindo e fecundando o solo preparado para a lavoura.


OURO! OURO!

Os plantadores de algodão queriam plantar desafiando a tecnologia e a burocracia dos bancos, porém, não dispunham de recursos financeiros para a compra de sementes e insumos agrícolas. Raciocinavam eles, com o argumento dos aflitos, que não lhes restava outra alternativa, já que quase tudo estava perdido. Não poderiam esperar pelo ano seguinte. Plantariam já. Assim, venderam juntas de bois, carroções, ferramentas, tudo que pôde ser negociado, e plantaram algodão. Continuou chovendo,
como esperavam e, em seguida a semente germinou. A roça começava a vingar. Quando abril chegou, com as manhãs mais bonitas do ano, a maçã do algodão já estava aberta e a alvura dos capuchos tingia as baixadas e serras de um branco virginal, dando a impressão, a quem os vê à distância, de que os campos de algodão são cafezais cobertos pela geada. Os plantadores da zona algodoeira, que se contam aos milhares de pequenos
proprietários de glebas familiares, estão exultantes com a safra deste ano, que veio para eles como um presente de Natal e um prêmio de reconhecimento à sua coragem na luta contra as armadilhas da natureza, que é mãe e também madrasta. Esta safra é uma festa de fartura e prosperidade. Com isto, os cotonicultores ignoram a crise econômica que engolfa o país e comentam, satisfeitos, os preços de cotação do produto que se firmam em Cr$ 3.500 por arroba e podem subir mais, segundo os mais otimistas.

É a corrida do ouro branco, o ouro que o homem do sertão planta e colhe multiplicado, e que passa pela mão de muita gente, ouro bendito! É a cultura do algodão, uma riqueza social que provoca a reação do comércio e da indústria, gera impostos para o governo e cria milhares de empregos de mão-de-obra temporária.

Quando em outras regiões, normalmente, há desânimo e impaciência com a crise nacional, na zona algodoeira tudo se passa conforme a safra pode permitir. Em Mato Verde, município algodoeiro por excelência, uma modesta loja de eletrodomésticos, em apenas uma semana, pode vender oitenta fogões a gás; e em Porteirinha, o município maior produtor de algodão no estado, um revendedor de motos está vendendo até seis unidades por dia, prevendo-se que a arrecadação local de ICM, no corrente ano, até agosto, já possa alcançar a cifra de Cr$ 500 milhões de cruzeiros. Nessas cidades, o avião do Bradesco já integra a paisagem, pois, sempre desce trazendo mais valores para a comercialização da safra, transformando aquela zona produtora em oásis da crise econômica geral, embora a região ainda não tenha recebido dos poderes públicos os inúmeros melhoramentos de que necessita para sua modernização.

Tudo isso acontece porque o homem do nosso sertão é teimoso e dotado de destemor para enfrentar as dificuldades que o próprio meio ambiente coloca em seu caminho. Mas ele não esmorece e trabalha. Até agora, ainda não foi derrotado. Logo, para definir o caráter e o heroísmo anônimo do lavrador de nossos campos semi-áridos, não existe nada mais coerente e atualizado que repetir, com gosto de novidade, a expressão imortal esculpida pelo gênio de Euclides da Cunha: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte.”


DONA TIBURTINA: MULHER DE FIBRA, SIM SENHOR!

Itamaury Teles
Cadeira N. 84
Patrono: Newton Prates

Montes Claros é uma cidade famosa, em nível nacional, por vários motivos.

Além da sua economia pujante, onde vicejam indústrias de ponta em termos tecnológicos, da sua Universidade Estadual, classificada como a segunda melhor do País – com base nos resultados do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade/MEC) - do seu rico folclore e da hospitalidade da sua gente, faz muito tempo que uma mulher é reverenciada, aqui e alhures, como ícone da braveza sertaneja: Dona Tiburtina.

Embora tenha seu nome vinculado umbilicalmente à cidade, Tiburtina de Andrade Alves – a famosa esposa do médico, chefe político e Deputado à Constituinte de 1934, Dr. João José Alves -, não é montes-clarense. Viu a luz na antiga São João Batista, cidade hoje conhecida como Itamarandiba, no Vale do Jequitinhonha, embora tenha vivido aqui boa parte da sua existência.

Ela morreu no dia 20 de abril de 1955, aos 80 anos de idade, já viúva pela segunda vez, porquanto, ao se casar com oDr. João Alves, ainda em plena mocidade, já enviuvara de um seu parente, moço com pendores para a boemia, com quem teve um casal de filhos.

Mas, por que Dona Tiburtina continua na ordem do dia, sendo motivo de teses acadêmicas, projetos de filmes, personagem proeminente em livros, e sempre destacada entre as figuras femininas que marcaram época no território montanhês, no século passado?

A principal causa disso tudo reside num episódio que sacudiu Montes Claros e que, segundo alguns historiadores, deu início à mudança de rumos na política nacional, culminando com a eclosão do movimento revolucionário, em outubro de 1930, que fechou o Congresso Nacional e empossou Getúlio Vargas.

O fato é que, em 6 de fevereiro de 1930, aconteceu em Montes Claros intenso tiroteio, envolvendo a caravana do então Vice-Presidente da República, Fernando de Melo Viana, que resultou em 6 mortes e 15 feridos, cuja repercussão ultrapassou as fronteiras pátrias. Tal episódio fora rotulado de “tocaia de bugres” pelo presidente da República de então, Washington Luiz – certamente sob forte emoção ao saber da notícia nefasta envolvendo seu substituto direto - , como se os montes-clarenses de antanho fossem índios.

Tudo começou quando a “Aliança Liberal”, facção comandada em Montes Claros pelo Dr. João Alves, tomou conhecimento da vinda da comitiva do Vice-Presidente da República, Melo Viana – da “Concentração Conservadora” – para aqui participar do “Congresso do Algodão e Cereais”.

Para tornar a recepção a essas autoridades a mais pífia possível, já que se aproximavam as eleições, os Liberais soltaram panfletos na cidade solicitando aos seus adeptos a não comparecerem à solenidade, permanecendo em suas residências, sob o argumento de que tal medida visava a evitar confronto. Todavia, tal tática resultou infrutífera, tendo em vista que o Conde Dolabela Portela fez chegar à cidade diversos vagões de operários de sua fábrica de açúcar em Granjas Reunidas, para fazer as vezes de claque durante a permanência das autoridades na cidade. Além disso, muitos Liberais acabaram não atendendo ao apelo, pois a vinda de um Vice-Presidente da República à cidade, por si só, era motivo de muita curiosidade popular.

O Vice-Presidente chegou acompanhado de grande séqüito, por volta das 23 horas, e, após discursos ainda na gare da Central do Brasil, desceram a Avenida Francisco Sá e viraram a rua D. João Pimenta, sob ruidosa manifestação popular, de “vivas” aos Conservadores e “morras” aos Liberais, acompanhados por espocar de fogos.

Ao passar em frente à residência do Dr. João Alves – que era situada onde é hoje o Automóvel Clube – um ruidoso petardo explodiu aos pés desse chefe político, atirado por manifestantes que gritavam o “morra” aos Liberais. Atordoado pela bomba e asfixiado pela fumaça dela resultante, o médico fora carregado por amigos seus para dentro da residência. Atribui-se a este fato o “estopim que ateou fogo à dinamite”, deflagrando descarga de tiros de carabina e revólveres, num intenso fogo cruzado.

Cessado o tiroteio e dispersa a multidão, contabilizou-se a morte das seguintes pessoas: José Antônio da Conceição, o menor Austílio Benjarane Tecles (Fifi), João Soares da Silva (João Gordo), Dr. Rafael Fleury da Rocha (secretário particular de Melo
Viana), Iracy de Oliveira Novais (irmã de Ary de Oliveira, diretor da “Gazeta do Norte”) e Dr. Moacyr Dolabela Portela.

Dentre os feridos, o Vice-Presidente Melo Viana, com lesões indiretamente imputadas ao tiroteio, pois, segundo a perícia, seus ferimentos foram causados por fragmentos ósseos projetados do crânio do seu secretário particular, Dr. Fleury, que fora alvejado ao seu lado.

Como em política o que importa é a versão e não o fato, após esse episódio que denegriu a imagem de Montes Claros, o perfil de Dona Tiburtina sobressaiu estampado em diversos jornais e, principalmente na revista “O Malho”, caricaturada em tocaia, de escopeta em punho, tendo ao lado um embornal com rapadura e farinha, como a comandante em chefe do ataque, após ver seu marido adentrar a residência pondo sangue pela boca e pelo nariz, atingido que fora por uma bomba.

Patrocinado ou não pelas hostes da “Concentração Conservadora”, que se opunham à “Aliança Liberal” capitaneado pelo seu marido na cidade, a versão que resiste sobre Dona Tiburtina, por quase 80 anos, é esta, de ter sido muito valente, uma espécie de “Coronel de saias”, como a rotula a “Albernaz Filmes”. Essa companhia cinematográfica pretende transformar em película a saga dessa mulher “que marcou época de mandos, envolvida em peripécias políticas interessantes no Norte de Minas Gerais”.

De fato, até o escritor e coronel reformado da PM, Geraldo Tito Silveira, afilhado de Dona Tiburtina, em casa de quem morou até a morte de seu marido, em 1934, deixa escapar em diversas partes do seu livro “Tocaia de Bugres”, aspectos que revelam a índole dominadora da sua madrinha, como ao narrar episódio em que, por ausentar-se da cidade para desarmar o reduto do Conde Dolabela Portela, logo após o tiroteio, o Tenente Coelho deixou o comando do “Batalhão Patriota” em mãos de um ex-colega. Este, para agradar Dona Tiburtina, mandou deter alguns adversários políticos do Dr. João Alves, levando-os ao cemitério local, onde lhes deu uma surra e os submeteu à humilhação de beberem urina com fezes. Ao saber do ocorrido, Dona Tiburtina mandou chamar o Tenente Coelho e lhe fez severa reprimenda: “- Tenente, o senhor fez mal em deixar o comando entregue a um irresponsável, pois o que fizeram a esses homens não é digno de uma pessoa honrada. O senhor é testemunha de que não tive qualquer participação neste ato monstruoso, mas irão dizer assim mesmo que “foi a mando de Dona Tiburtina”.

Noutro trecho, o Cel. Tito descreve o encontro de um repórter do jornal “O Globo” com Dona Tiburtina, na presença do Dr. João Alves. Além de haver notado visíveis sinais de que o Dr. João Alves se encontrava bastante enfermo, observou o carinho deste para com Dona Tiburtina, “evitando sempre contrariá-la e mostrando-se solícito em atendê-la em seus menores “caprichos”. Daí a impressão de que ela o dominava, embora fosse um homem culto, de muita cultura mesmo!” – assinala Tito da Silveira.

Em e-book disponível na Internet, o escritor Fernando Gabeira ratifica a imagem de Dona Tiburtina, como uma mulher valente e destemida, que fazia e acontecia. Em seu texto, o atual e combativo deputado federal Gabeira relata: “No bolso quatro nomes de mulher: Tia Pantera, Beja, Chica da Silva e Olímpia de Ouro Preto. Não me pergunte por que quatro e não oito, pois não saberia responder.

- Falta uma. Tiburtina. Dona Tiburtina.

O nome era de uma respeitável sonoridade, mas por si só não me arrebataria se os olhos de amigo não brilhassem tão maliciosamente e se ele não batesse com as mãos abertas nos quadris, retirando-as fechadas, como se tivesse dois revólveres apontados em minha direção.

- Tiburtina era brava; fazia e acontecia.

Tiburtina. Assim, armada de dois imaginários revólveres, ela entrou na minha pequena lista, descortinando um lugar que não suspeitava visitar no momento: o sertão.”

Noutro trecho, uma personagem de Gabeira se insurge contra infâmias de um seu detratador, e ameaça: “- Você disse que eu estou dando para uma pessoa. Não repete, senão te arrebento. Arrebento mesmo. Você não me conhece: sou sobrinha da Dona Tiburtina. Te mato.”

Enquanto viveu, o escritor Geraldo Tito Silveira foi um defensor incansável da memória de sua madrinha, tendo acusado inclusive Gabeira de ser tendencioso, ao escrever seu livro ouvindo apenas os descendentes de inimigos políticos do Dr. João Alves. Para ele “Dona Tiburtina é uma mulher lendária como D. Beija, Joaquina de Pompéu, Maria da Cruz, Chica da Silva e outras, embora tenha sido muito diferente de todas elas, pois não se aproveitava de sua posição para mandar tirar a vida alheia.” Por fim, atribuiu as acusações a Dona Tiburtina, mais uma vez, aos inimigos políticos do Dr. João Alves, porquanto “o povo não acreditaria que ele, médico da pobreza, benemérito da “Gripe Espanhola”, seria capaz de mandar tocaiar seus adversários”.

De forma mais edulcorada, bem ao estilo do tradicional político mineiro, o Governador de Minas, Aécio Neves, na solenidade de encerramento da Semana da Inconfidência, em 21 de abril do ano passado, fez referência a “Dona Tiburtina de Montes Claros” em seu discurso, alinhando-a dentre as mulheres mineiras que ajudaram a construir a nossa história e, ao lado de Dona Joaquina de Pompéu, classificou-a como uma das “matriarcas poderosas”.

E assim, subsistente ao tempo que flui célere, a controvertida figura de Dona Tiburtina se nos afigura cada vez mais viva, evocando, sempre, profundo respeito e admirável fascínio.


HOTEL SÃO LUIZ - O CRISTO DE GODOFREDO

João Carlos Sobreira
Cadeira N. 53
Patrono: João Batista de Paulo

O salão de refeições do hotel era bastante grande, tinha dezesseis mesas quadradas, de madeira maciça, com um metro e vinte centímetros de lado, pintadas de preto. Também tinha dois móveis de apoio para guardar pratos, pires, xícaras, copos, talheres, toalhas e guardanapos de pano (ainda não se usava de papel!). Os móveis também serviam de aparador e ficavam um de cada lado da escadinha que fazia a ligação com a copa e, através dela, com a cozinha. E havia uma geladeira imensa de quatro portas, mais à direita

Mas, o que eu quero destacar aqui é a presença, na parede do fundo do salão, de um quadro pintado por Godofredo Guedes. Hoje ele se encontra no meu escritório, compondo minha pequena galeria de arte, constituída de pinturas, fotografias, trabalhos em madeiras e cerâmicas, cartazes etc.. Este Cristo pintado por Godofredo é datado de 1936 e, seguramente, deve ser a mais antiga de suas obras de pintura em Montes Claros. Trata-se de uma peça, em óleo sobre tela, medindo 0,70 x 1,17 metros.

Pelo fato de ela ter ficado por aproximadamente dezoito anos exposta em um salão de refeitório de um hotel, sob a ação de poeira (neste período as ruas do centro eram apenas encascalhadas) e da fumaça, diariamente vinda da cozinha, de manhã, ao meio dia e à noite, foi restaurada pelo autor em 1959, época em que passamos o hotel para 'Seu' Zé Português e o quadro foi conosco para a nossa casa nova, na rua Dr. Veloso.

Godofredo, baiano de Montes Claros, faleceu em 1983 e foi, no meu entender, um verdadeiro gênio das artes. Pintor autodidata, deixou uma imensa galeria de obras, em que apresenta belíssimas pinturas de alto gabarito, paisagens e marinhas repetitivas (estas ele as fazia em série, a exemplo do modelo fordiano). Além disso, foi um excelente músico e executava, com maestria, obras no saxofone e clarineta (instrumentos de que mais gostava), no piano e violão. Era exímio construtor de instrumentos musicais. Fabricava, principalmente, pianos, violões e cavaquinhos. Pesquisadores do Conservatório Lorenzo Fernandes conseguiram resgatar várias composições do Mestre Godofredo para todos os instrumentos citados, incluindo obras de valsas, chorinhos, serestas, sambas, marchas e outros ritmos. Foi, para mim, uma alegria e um grande contentamento conviver com Godofredo na minha juventude. Ele era muito amigo de meus pais. A convivência com seus filhos posteriormente, no âmbito profissional e social, representa também uma imensa satisfação.

O quadro, a que me refiro no segundo parágrafo, traz a figura de Jesus Cristo com uma cara de nordestino, cabeça chata e grande, testa curta, rosto com maçãs proeminentes. Será que ele quis homenagear papai, que era paraibano de Campina Grande? Mostra Cristo em pé, em cima de uma rocha, com as palmas das mãos abertas, viradas para a frente, um pouco abaixo da cintura. Atrás, aquém da rocha, apresenta um mar não muito revolto. Mais ao longe, na linha do horizonte, aparece o final do crepúsculo, com a luminosidade do poente em fase derradeira. E, mais ao alto, no céu, já começam a despontar as primeiras estrelas. A lua amarelada atrás de Sua cabeça confunde-se com o halo de divindade. O semblante do Cristo é tranqüilo e dá a impressão de muita paz. Suas vestes são simples e Ele está descalço. Sempretive grande admiração por este quadro e é uma imensa satisfação tê-lo em frente à minha mesa, no escritório.

Nem sempre o Cristo de Godofredo foi interpretado artisticamente. Muitas vezes, foi um recurso para blagues interessantes. E Godofredo, sabendo dessas estórias ria bastante, com aquele riso aberto e espontâneo que ele sempre trazia no rosto. Como bem me recordo, no hotel, os viajantes sempre procuravam fazer gozações em todas as situações possíveis para atenuar o estresse da labuta diária de vendas e viagens. Seu Oswaldo, viajante da Brahma (é verdade: naquela época as companhias de bebidas - Brahma, Antarctica, Caracu, Cinzano etc. - enviavam seus viajantes periodicamente para vender seus produtos), dizia, sempre ao passar pelo quadro, papai estando por perto: -"Olha lá, Sobreira. O Cristo está dizendo: - Ô Sobreira, é só isso que o pessoal vai almoçar?" Ao que papai retrucava: - "Que nada, Oswaldo. Olhe bem para as mãos Dele. Ele está dizendo claramente para vocês: - "Ô gente! Com uma refeição com essa fartura, o que é que vocês querem mais?”

O Cristo de Godofredo salvou muitas situações...


UM BREVE HISTÓRICO DO ENSINO EM
MONTES CLAROS A PARTIR DE 1955

Juvenal Caldeira Durães
Cadeira N. 81
Patrono: Nathércio França

Após o término do curso ginasial (1º. grau) em Londrina – PR, regressei em 1955 à minha terra natal, Montes Claros. Naquelas terras abençoadas do Sul, passei boa parte de minha juventude, porém sem esquecer um momento do meu berço natal. Aqui, cheguei com o propósito de matricular-me no curso científico (2º. Grau) e permanecer até o seu final para, depois, tentar o curso de engenharia mecânica em Belo Horizonte. Mas, para a minha surpresa, aquele curso apropriado, para dar continuidade aos meus estudos, não existia na nossa cidade e nem tampouco na região norte-mineira. Os cursos a nível de 2º. grau existentes na época eram: Magistério, na Escola Normal Oficial e no Colégio Imaculada; Técnico em Contabilidade, no Instituto Norte Mineiro de Educação e o Clássico, no Colégio Diocesano, além do ensino religioso, no Seminário. Apesar de equivalentes ao curso científico, suas programações não eram direcionadas ao curso de engenharia mecânica.

Decepcionado e sem esperança de conseguir o meu intento, aderi a uma turma que se encontrava na mesma situação, para lutar junto à diretora, Profa. Dulce Sarmento, da Escola Normal Oficial, instalada no velho casarão da rua Cel. Celestino, 75 e também, aos políticos locais, Deputado Dr. Plínio Ribeiro e o vereador Neco Santamaria, na intenção de conseguir a criação daquele curso, a fim de atender ao anseio da turma desamparada e ansiosa para estudar.

D. José Alves Trindade, então bispo Diocesano de Montes Claros, sentindo o drama da turma e as dificuldades das autoridades procuradas para resolver o problema, pôs-se à frente do movimento. Designou o Prof. Dr. João Antônio Pimenta de Carvalho como coordenador da criação do primeiro curso científico em Montes Claros e, conseqüentemente, do Norte de Minas.

Dali para frente, o Dr. João Antônio, com apoio da diocese, liderou o movimento, negociando com a Congregação Católica da Irmandade Imaculada Conceição para a instalação do referido curso nas dependências do seu Colégio, no turno noturno, enquanto outro local fosse providenciado.

O curso, finalmente, teve início no ano de 1955 com um atraso natural, devido às dificuldades mencionadas, para, depois de dois anos, passar para o Colégio Diocesano, onde os alunos pioneiros formaram em 1957, ficando na história como fundadores do curso científico em Montes Claros.

Ainda me lembro de alguns colegas da primeira turma como: Décio Gonçalves (cabeça do movimento), Franklin Santos, Célio Dourado, Lúcio Benquerer, João Porfírio Sarmento, João Élcio da Rocha, Luís Gonzaga, Marlene Veloso Souto, Dulce Rodrigues, Maria Zoé e Ione Ribeiro. Na segunda turma, de 1966, lembro-me de Cícero Medeiros, Homero Meira, Mário (Português) Vasconcelos, Bernardo, Ruy Dupin, Paulo Ponciano e Juraci Teixeira.

Dos professores, recordo-me de todos: Dr. João Antônio Pimenta de Carvalho (Matemática); Irmã de Lourdes e Monsenhor Gustavo (Português); Padre Joaquim Cesário Macedo

(Literatura e Filosofia); Irmã Branca (Desenho Geométrico); Irmã Nina (Francês); Irmã Galgânia e Maria de Lourdes de Freitas (Espanhol); D. Jane Crosland (Inglês); Dr. Francolino Santos (Geografia); Padre Paulo Emílio Pimenta de Carvalho e Pedro Martins Santana (História); Wanderback de Quadros e Santinha (Química); Dr. Abílio, Haley Jonsen, Padre Ladislau, Dr. Américo e Jamil Curi (Física); Dr. Fábio e Dra. Zeni Guimarães (Biologia). Estes foram nossos professores, primeiros colaboradores e fundadores do curso científico em nossa cidade.

Uns professores eram religiosos e militavam no magistério; outros, liberais em áreas afins com as matérias. A professora Maria de Lourdes de Freitas era a única com licenciatura plena, pela UFMG.

Em 1957, eu cursava ainda o 3º. ano. O então diretor do Colégio Diocesano, Monsenhor Gustavo Ferreira, movido pela carência de profissionais do ensino na cidade, fez-me professor de Física do 1º. e 2º. anos do curso científico, baseado em
informações dos professores, apesar de minha resistência e insegurança na prática do magistério. Em 1958, fui chamado, por informações do inspetor Dr. Antônio Augusto Veloso, para lecionar Matemática na Escola Normal Oficial, no lugar do bancário e professor Assis Veloso, transferido para a agência do Banco do Nordeste, em Recife.

Na Escola Normal Oficial, instalada no casarão da rua Cel. Celestino 75, passei a conhecer os profissionais do ensino daquela época em Montes Claros. Ali, trabalhei ao lado dos compenetrados professores efetivos da Egrégia Congregação: Márcio Aguiar (Português); João de Almeida Filho, Terezinha Pimenta, Dr. João Antônio Pimenta de Carvalho (Matemática); Pedro Martins Santana (História); Dr. Francolino Santos (Ciências Naturais e Geografia); José Amâncio (Latim); Jane Crosland (Inglês); Terezinha Guimarães (Francês); Dr. Luís Pires Filho (Biologia); Heloísa Veloso Sarmento (matérias pedagógicas); Naide Veloso (Educação Física), Dulce Sarmento (Música);

Zorilda Madureira e Taúde, então diretora(Trabalhos Manuais). Contratados: Eu, Waldir Rametta (Matemática), Rosita Aquino, Teresa Barbosa, Heloísa Neto (Português), Neuza Maciel, Neise Melo Franco (Geografia), Aloísio Pimenta e Lauro Costa (Ciências Naturais), João Rodrigues dos Santos (Dão), Neide Melo Franco, Guiomar (Galo) (História), Antônio Miranda - Piloto - (Educação Física) e outros. Éramos contratados e não pertencíamos, naquela época, à intocável Egrégia Congregação.

A demanda cresceu e mais professores (Alcides de Carvalho, José Carlos Callado, Haroldo Lopes e outros) foram contratados. A velha escola inadequada, não comportando a sua superlotação e até ameaçada de desmoronamento, conforme propalavam os alunos em seus movimentos estudantis, foi transferida em 1962 para o novo prédio construído na Av. Mestra Fininha, em terreno doado pelo Dr. Plínio Ribeiro, no governo de Magalhães Pinto. O novo e suntuoso estabelecimento, que deu seqüência à antiga Escola Normal Oficial, tomou o nome de Escola Estadual “Prof. Plínio Ribeiro” de 1º. e 2º. Graus (EEPPR), em homenagem ao doador do terreno. Porém, o nome “Escola Normal” ainda é lembrado e permanece na memória e no coração de seus antigos egressos: alunos, professores e funcionários.

A suntuosidade e as boas instalações do prédio deram condições para manter com eficiência os cursos já existentes e ainda criar o almejado curso científico e aumentar a população estudantil, além de quatro mil alunos, o que forçou a contratação de muitos professores como: Rosa Terezinha Paixão Durães, Expedito Édson Lopes, Wandaick Wanderley, Miguel, Francisco Basto Gil (Matemática); Tarcísio Pimenta de Carvalho, Ana Maria Lopes (Biologia); Simeão Ribeiro Pires, Tarcísio Pimenta de Carvalho (Química); Cleonice Pimenta e Bernadete Costa (Ciências Naturais); Neide Pimenta, Mercês Antonieta Costa, Monsenhor Gustavo Ferreira, Wanderlino Arruda, José Ezequiel (Português); Lourdes Martins de Quadros (Artes); José Soares da Silva, Joaquim Salvador, João Barbosa (Física); Edmundo Andrade Santos, Beatriz Gonçalves Santos, John Gorayski, Wanda (Inglês);

Ygara, Mary Figueiredo, Neide Pimenta (Francês); Clarice Sarmento (Música); José Geraldo Antunes (História) e muitos outros que, para regularizarem suas situações funcionais, foram submetidos a concursos públicos e em conseqüência, a Egrégia Congregação cresceu e tornou-se mais democrática e menos arrogante.

A Escola Estadual “Prof. Plínio Ribeiro” de 1º. e 2º. Graus deu continuidade ao ensino primoroso da velha Escola Normal Oficial naquelas décadas passadas. Eu e o Prof. João Rodrigues dos Santos (Dão), já efetivos e pertencentes à Congregação, fomos os primeiros vice-diretores, até então, nomeados pelo Estado, para atuarem, sucessivamente, nas gestões dos diretores: Dr. Luís Pires Filho, Dr.Francolino Santos e Profa. Sônia Prates Gonçalves de Quadros Lopes. Fui, ainda, diretor eventual aprovado pela Egrégia Congregação.

No período (1958-1984), de minha permanência naquele educandário, tivemos os seguintes diretores: Profa. Taúde, Dr. Arthur Fagundes, Prof. Joaquim Coelho da Rocha, Dr. Luís Pires Filho, Dr. Francolino Santos, Profa. Heloísa Neto, Sônia Prates Gonçalves Lopes e Profa. Mercês Antonieta Costa.

Paralelamente, o Instituto Norte Mineiro de Educação, Colégio Imaculada Conceição, Colégio Diocesano cresceram progressivamente e o ensino melhorou, principalmente, com as instalações posteriores do Colégio São José (Marista), Loyola e São Norberto.

Em 1964, foram instalados, no Colégio Imaculada Conceição, os primeiros cursos de ensino superior encampados pela “Fundação Educacional Luiz Paula”: Letras, Pedagogia, Geografia e História, tendo como pioneiras e professoras: as gêmeas Figueiredo, Mary (Letras) e Baby (Pedagogia); Florinda Ramos e Pina, Dalva Dias Santiago (Geografia); e Isabel Rabelo de Paula (História e primeira Diretora). Todas recém-formadas pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em Belo Horizonte. Glacíria Mendes (Filosofia e Sociologia, do curso de Pedagogia) formada em Belo Horizonte e outros, também, foram professores pioneiros, mas não participaram do movimento de criação dos cursos.

Esses cursos foram criados por um projeto do Deputado Estadual Cícero Dumont e coordenados pelo Dr. Hermes de Paula, sua secretária Adélia Miranda e outros, que deram início às atividades letivas em 1964. Eu fui aluno pioneiro do curso de Pedagogia, tendo como colegas ilustres, D. Maria Pires, D. Elisa Pires, América Eleutério Nogueira, Jovelina Pinheiro, Tilde Sarmento, Lúcia Idalina Narciso, Miriam Milo, Miltom Norberto e outros, igualmente importantes. Era uma elite pensante que esperava por uma oportunidade para fazer desabrochar seus conhecimentos.

O velho casarão da Cel. Celestino passou a abrigar os referidos cursos, em 1966, com o nome de Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras/FAFIL, incorporada pela Fundação
Norte Mineira de Ensino Superior (FUNM). Depois, ali funcionou, também, no andar superior, a Faculdade de Direito ( FADIR ), até 1978.

Outros cursos foram surgindo na FAFIL. Na gestão da Profa. Sônia de Quadros, houve um movimento para a criação do curso de Matemática, liderado por Wandaick Wanderley, Waldir Rametta, por mim e outros colegas. No ano de 1968, sessenta e quatro alunos deram início ao curso com uma turma no período vespertino e outra no período noturno que, com a evasão, fundiram-se e, em 1971, formava uma única turma noturna com apenas dezesseis formandos: Clarindo Anacleto, Coracil, Édson Guimarães, Egídio Cordeiro Aquino, Gerson Barbosa, Geraldo, Ivanete Lopes, Juvenal Caldeira Durães, José Carlos Callado, José Soares da Silva, Marisa Guimarães, Rivaldo Bezerra, Rosa Terezinha Paixão Durães, Walquíria Gonçalves, Waldir Rametta e Wandaick Wanderley. Desses formados, continuaram, até a aposentadoria, como professores do curso: eu (Álgebra Vetorial e Linear, Geometria Analítica e Análise Matemática); Rosa Terezinha Paixão Durães (Estatística e Elementos de Matemática);
José Soares da Silva (Física). Outros começaram ministrando algumas matérias, mas não prosseguiram, levados, talvez, pelo desinteresse de fazerem especializações exigidas em outros centros mais avançados.

Os professores pioneiros e que sustentaram o curso de Matemática: Francisco Bastos Gil; Arquiteto Dr. João Carlos Sobreira; Eng. Dr. Carlos Alberto Pimenta de Carvalho; Eng. Dr. Rodolfo; Baby Figueiredo; D Lourdes; América Eleutério Nogueira; Ivone Silveira e outros.

Depois dos meus cursos de especialização na UFMG e PUC/BH, além de professor, fui Chefe do Departamento de Matemática e Vice-diretor da profa. Maria de Lourdes (D Lourdes). E acompanhei o crescimento, não só da FAFIL, mas do ensino na cidade, que cresceu vertiginosamente com novos estabelecimentos bem aparelhados, tais como: Escola Técnica de Montes Claros (fui o 1º. professor de Matemática); Biotécnico; Padrão; Razão; Logos; Indyu; Opção e outros de mesmo nível, mantendo cursos de 1º. , 2º. graus e cursinhos pré-vestibulares, para atenderem à grande demanda proveniente da transformação da Fundação Norte Mineira de Ensino Superior/FUNM em Universidade Estadual de Montes Claros/UNIMONTES, em 1990. Encargo e ao mesmo tempo dádiva, que Montes Claros recebeu para atender o Norte de Minas e regiões adjacentes.

No segundo semestre de 1992, o velho prédio superlotado e não suportando a grande demanda, a FAFIL foi transferida daquele casarão da rua Cel. Celestino, para um prédio
no Campus da Universidade Estadual de Montes Claros/ UNIMONTES. Terminou o mandato da diretora D Lourdes e eu fui eleito e indicado pelo Magnífico Reitor, Dr. José Geraldo de Freitas Drumond, como diretor daquele estabelecimento de ensino, já estadualizado e com nova denominação de Centro de Ciências Humanas/CCH)/UNIMONTES. Ali, além de diretor do CCH, atuei, paralelamente, como professor do curso de
Matemática e participante da elaboração da nova estrutura da Universidade no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão e, ainda, nas decisões administrativas do Conselho Universitário, como membro nato.

A UNIMONTES agigantou-se com a profícua e brilhante administração do Dr. José Geraldo de Freitas Drumond e de seus colaboradores. Por outro lado, a Escola de Técnicas Agrícolas/UFMG ampliou as suas instalações e atividades, tornando um campus universitário, com cursos técnicos e superiores, ministrados por professores pós-graduados. E, seguindo o ritmo dessas instituições públicas, estabelecimentos particulares de ensino superior foram criados, tais como: FUNORTE, IBITURUNA, PITÁGORAS, SANTO AGOSTINHO, FACIT e outros, elevando Montes Claros à categoria de CIDADE UNIVERSITÁRIA.

Em 1997, fui aposentado e afastei-me das lides do magistério, todavia, não perdi o interesse de acompanhar as eventualidades e mudanças nos meios educacionais, não só em Montes Claros, mas, em âmbito nacional. Acompanhei as constantes modificações das diretrizes e bases do ensino, até então sem sucesso, transtornadas por fatores diversos que penetram no contexto geral da educação, levando-a, ao meu ver, à falência. Hoje, ensina-se muito e aprende-se pouco.

O ensino atual é inconsistente e fragmentado, não por falta de preparo dos eminentes educadores, mas pela contingência da época que atravessamos e pela política adotada no país. Os professores, apesar de detentores de conhecimentos e de títulos que não tivemos no passado, são desprestigiados, mal remunerados e trabalham sem condições dignas e sem incentivos. As crianças e adolescentes agem com indisciplina, sem limites e influenciados por atrativos eletrônicos diversos e pelos males da época. Enfrentam riscos, aliciamentos e vícios abomináveis. As autoridades e alguns políticos preocupam-se e trabalham em prol da Educação; outros são omissos e se aproveitam do Ensino para tirar suas vantagens pessoais e eleitoreiras, com promessas não cumpridas. Criam artifícios inconcebíveis e intempestivos, como a criação de sistema de cotas para pobres e negros, mesmo sabendo que pobreza e cor de pele não influenciam nos neurônios e na capacidade das pessoas e que outros métodos não humilhantes e não preconceituosos existem com mais eficiência e justiça. Para resolver o problema da desigualdade de aprendizagem, basta manter cursos preparatórios de boa qualidade e gratuito para as pessoas desfavorecidas e deixar que todos concorram nas mesmas condições. Esse jeitinho de tapar o sol com peneira só serve para humilhar e disseminar o preconceito entre as classes e raças. São idéias esdrúxulas ou com segundas intenções, que precisam ser revistas. Eu convivi, estudei e trabalhei com brancos, negros, orientais, pobres e ricos, nem por isso, notei qualquer diferença em relação à capacidade de aprendizagem entre eles. É verdade que uns sobressaíam mais do que outros, mas pelo talento individual de cada um e não provenientes desses atributos explorados por políticos populistas. A aprendizagem não é privilégio de classe ou raça. É de quem estuda e luta para vencer. As autoridades devem favorecer os alunos carentes, mas de maneira decente e justa e não com malabarismo irresponsável. O ensino é coisa séria e seus resultados serão utilizados a serviço da sociedade, portanto, carece de preparo, de esmero, de responsabilidade e não de manobras.

Aproveitando o ensejo, insiro aqui o seguinte trecho do meu novo livro “ Sítio Azedo”, que será publicado, brevemente:

Ouvimos, constantemente, dizer que só a Educação pode reparar as aberrações que desestabilizam o país e perturbam o bem-estar da sociedade. Uma assertiva verdadeira. Mas, com os resultados obtidos nessa área nos últimos anos, deixam-nos crer que estamos usando instruções no lugar da Educação. É notório que, dentro do sistema vigente, têm-se revelado cidadãos ilustres, honestos e detentores de conhecimentos invejáveis e aplicados a bem da sociedade.

Todavia, temos outros com os mesmos conhecimentos, porém desvirtuados e direcionados ao oportunismo, que nos envergonham com suas mazelas e desonestidades. Temos, ainda, aqueles desfavorecidos, que não recebem tais instruções e não deixam de cumprir com seus deveres de cidadãos, com honestidade e com valiosa participação no progresso e no bem estar da sociedade. Ao mesmo tempo, temos outros que degeneram e são vencidos pelos embates da vida e tornam-se desonestos, oportunistas, preguiçosos, sem consciência política e social e coniventes com o desmando escabroso que assola o país. Então, diante dessa diversidade de comportamentos das pessoas, não podemos dizer que seguimos uma verdadeira Educação e sim, instruções sem objetivos direcionados. Até parece que é preciso algo mais para solucionar o problema do comportamento humano. Talvez, com a participação efetiva e harmônica da família equilibrada e da religião racional prática, juntamente com o apoio sério do governo, com o combate à desigualdade social e a valorização do ser humano como participante do contexto nacional, como diz o sociólogo Betinho: “Só a participação cidadã é capaz de mudar um país”. Seguindo esses preceitos, talvez, poderemos alcançar uma Educação ideal, objetiva, direcionada a uma meta determinada e consistente, capaz de despertar e influenciar algo de positivo e prático na formação do caráter do povo brasileiro e atingir as metas desejadas.

Confiando na memória e na convivência de mais de meio século nos meios educacionais de Montes Claros, fiz o presente resumo do ensino no Norte de Minas, a partir da década de 50, mencionando importantes criações e eventos, dos quais participei, tais como: curso científico; cursos superiores, que deram origem à UNIMONTES; Escola Profissional Umbelino Martins da RFFS/A; cursos da CADES/MEC (Matemática e Geografia); exames de Madureza/MEC; Escola Técnica de Montes Claros; Escola Estadual Professor Plínio Ribeiro/EEPPR; estrutura pedagógica dos cursos da UNIMONTES; curso de Matemática/FAFIL e para aumentar a minha satisfação, em 27/12/2006, participei da criação do INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE MONTES CLAROS / IHGMC, como diretor de finanças.

Assim, acompanhei o desenvolvimento educacional da nossa comunidade por mais de 50 anos, que somado ao tempo de atividades anteriores, alcança a metade da existência de nossa cidade, o que me faz sentir regiamente agraciado e compensado por ter participado desses eventos do passado que, apesar das dificuldades e limitações dos tempos, deixaram marcos de épocas promissoras, permeados de exemplos dignos e de trabalho sério por pessoas altruístas e laboriosas.


SOBRADOS E SERTÕES - MEMORIALISMO,
REGIONALISMO E NOSTALGIA
NA OBRA DE JOÃO VALLE MAURÍCIO

Karla Celene Campos
Cadeira N. 14
Patrono: Arthur Jardim de Castro Gomes

Ele também tombou. Tombou vencido pelo tempo. Foi ao chão.
(O sobradinho da tia Augusta)
João Valle Maurício.

Não importam que a tenham demolido:
A gente continua morando na velha casa em que nasceu.
(Quem disse que eu me mudei?)
Mário Quintana

 

Fatores que remetem ao universo do regionalismo, do memorialismo e da nostalgia, liricamente resgatados das próprias vivências, dos contatos com a terra natal, com o homem da terra natal, emoldurados por um profundo respeito pela cultura do lugar alicerçam a obra literária de João Valle Maurício.

De suas páginas, salta todo um universo que se remonta ao espaço geográfico no qual foi criado; ao registro de elementos que a memória recupera, e à nostalgia - porque tudo que sobrevive sobrevive apenas porque se transforma em memória.

Escutemos as palavras com as quais João Valle Maurício tece a apresentação de seu livro de memórias Janela do Sobrado.

Todos nós somos muito mais o passado do que o presente. Somos no agora o que o tempo já levou. Somos a esperança do amanhã.

Sempre fui um gostador da família, dos casos da cidade, dos meus conterrâneos e dos meus amigos. Saudade é voz na garganta de quem não esquece.

Reconheço que não devemos amarrar-nos demais, pois, um dia, tudo tem mesmo que terminar. (...)

João Valle Maurício fez sua estréia nas letras em 1962, com a obra Grotões, um livro de contos. A escolha do título para aquela que seria a primeira obra literária de um escritor fecundo, cujas raízes se misturam com o sertão norte-mineiro, já evidencia uma linha temática que posteriormente seria explorada em outras cinco obras: Taipoca (Itatiaia, 1974), Pássaro na Tempestade (Imprensa Oficial de Minas, 1982), Rua do Vai Quem Quer - (Armazém de Idéias, 1992), Janela do Sobrado - Memórias (Arapuim, 1992) e Beco da Vaca (Editora Arapuim, 1999) - obras que oferecem ao leitor um retrato bem delineado da Montes Claros e dos sertões de um tempo passado - época dos sobrados, dos coronéis, das boiadas, do carro de boi, dos rios de águas claras e cristalinas, das assombrações.

Edison Moreira, em prefácio à obra Taipoca, lembra que

(...) a Ecologia, ciência que estuda as relações entre os organismos e o seu ambiente, é de interesse vital para a humanidade de nossos dias, retomando e reformulando a velha tese de que o homem é produto do meio e também nele influi. No caso do escritor, como acontece com João Valle Maurício, o meio ambiente reflete-se em sua obra. Filtrado através de uma sensibilidade seletiva de poeta, deixa-nos entrever o que constitui o substractum de uma região, em seus vários aspectos: social, político, econômico, rural e religioso, configurado por uma razoável e preciosa soma a vida do folk naquelas paragens de Minas Gerais.(...)

Aproveito os lúcidos comentários acima para deter-me na expressão naquelas paragens de Minas Gerais - o que sugeredistanciamento entre o comentarista residente na capital mineira e a região focalizada por Valle Maurício -, para lembrar que o Norte de Minas, seja pela distância geográfica da sede políticoadministrativa do Estado, seja por não fazer parte das regiões auríferas e industriais, sinônimos de uma economia mais robusta, esteve, ao longo da História, relegado a um segundo plano nas
considerações de estudiosos e de leitores que voltaram suas atenções mais para as minas do que para os gerais. Assim, a estes torrões setentrionais foi negada a oportunidade de ver reconhecido o seu real valor.

Ora, é preciso corrigir essa distorção. E uma forma que se apresenta como veículo seguro para essa correção é detectar o orgulho pela terra natal que salta do memorialismo, do regionalismo e da nostalgia presentes nos contos e crônicas de João Valle Maurício, o menino João, que aos 12 anos fora levado à capital para um tratamento de saúde e, naquela ocasião, escutou da boca sem maldade de uma empregada doméstica, ao referir-se a ele:

- Esses meninos da roça são danados. (Na capital, Janela do sobrado; p.95)

A roça, no caso, é Montes Claros, que, provinciana ou progressista, tem uma história riquíssima e particular muito bem documentada na literatura do mesmo João, que mais tarde escreveria:

Sem dúvida, a situação geográfica de Montes Claros, bem distante dos grandes centros mais avançados, forçou para que ela firmasse uma individualidade com características próprias.

O povo que veio para cá veio para ficar, veio para criar família e fazer o pé-de-meia para o amanhã. Foi esse povo que chegou trazendo suas coisas, seus costumes e a sabedoria própria da região de origem.

Assim foi-se formando uma cultura, chegando de fora,mas que foi, muito logo, alcançando definições próprias. Não recebemos, como as cidades litorâneas, as influências estrangeiras com variáveis constantes. Com o tempo, ganhamos, por nossa obstinação e teimosia, uma autenticidade bem marcada, isto é, bem nossa.

Podemos dizer, ainda hoje, que, apesar dos meios de comunicação e da explosão comercial e industrial, a cidade conserva uma cultura bem própria e de real valor. (...)
Real valor demonstrado com orgulho no regionalismo presente em sua obra. João Valle Maurício se sabia um escritor regionalista. Em seu discurso de posse na Academia Mineira de Letras (Belo Horizonte, 1983) o neo-acadêmico montes-clarense comenta:

(...) O Regionalismo tem força. Muita obra literária de grande valor foi feita no molde regionalista. Bons escritores brasileiros, em grande parte, são regionalistas. Os bons contistas russos também o foram. (...)

Ainda no referido discurso, depois de acrescentar com humildade que nem de longe pensaria em comparar-se aos bons escritores brasileiros, aos bons contistas russos, revela, por fim, ser um contador de histórias. Também na apresentação que fez para Janela do Sobrado comenta:

Faz bem tempo que descobri que sou um contador de casos. Meu pai também foi, mas ele não escrevia. Quando foi ficando mais velho, começou a repetir, em conversas, as suas histórias. Mamãe logo reclamava, mas ele contava assim mesmo. Pensando bem, resolvi escrever meus casos para não ficar um insistente repetidor. Ficarão nos livros. Serão saudade e imaginação.

E são essas histórias, esses causos que retratam, eficiente e liricamente, a vida no sertão norte-mineiro. Através de uma memória lúcida e uma linguagem poética. Com saudade e imaginação.

E por falar em memorialismo, seria o mesmo que autobiografia? Segundo Massaud Moisés, em seu Dicionário de Termos Literários, há divergência. Enquanto a autobiografia “permite supor o relato objetivo e completo de uma existência, tendo ela própria como centro, as memórias “implicam um àvontade na reestruturação dos acontecimentos e a inclusão de pessoas com as quais o biógrafo teria entrado em contacto.”

A leitura dos contos e crônicas de Valle Maurício apontam para isto: um muito à-vontade na reestruturação dos acontecimentos, verdade e ficção, como ele mesmo garante na apresentação à qual já fiz referência aqui. Quanto à inclusão de pessoas com as quais o biógrafo teria entrado em contato, a lista de nomes é extensa, o que me impede reproduzi-la nestes escritos. É preciso comentar, no entanto, que, seja através da citação da gente simples, popular, seja das referências aos coronéis, aos poderosos, João Valle Maurício vai muito à vontade pelas páginas afora, resgatando as lembranças da sua vida, do seu povo e do seu lugar.

É ele mesmo que comenta:

Não sou um memorialista-historiador. Essa atividade requer teimosia e capacidade, exige o cuidadoso manuseio de antigos documentos, a abertura de velhas canastras escondendo puras emoções, a leitura de jornais amarelecidos e roídos pelas traças e, ainda, demoradas conversas-entrevistas com muito gente. Sei muito bem que não consigo ser assim. Sou um contador de casos, um memorialista a meu modo. Aqui não está a minha biografia e nem a história da minha cidade. Aqui estão lembranças abraçadas em pedaços de emoção. O menino que fui, a quem quero muito bem, ficou bastante imprudente e intrometido, puxando o meu paletó e insistindo para que eu escreva os casos da Rua de Baixo. (...)

Precisamos agradecer a esse menino teimoso que insistentemente puxou o paletó do Dr. João Valle Maurício médico-político-intelecutal-homem. Afinal, não fosse ele, João
Valle Maurício-escritor não teria chegado à conclusão de que no chamamento da memória, o passado pode virar presente, e, mesmo no outono, pode se vestir com o encanto da primavera. Somos marcados, esculpidos pelo cinzel dos dias vividos. À medida que a velhice vai chegando e vai ficando, vamos, cada vez mais, gostando de contar histórias e de falar das relembranças. (...)

Não fosse esse menino teimoso, o contador de histórias não teria apreendido a consciência do efêmero da vida; não assumiria que o passado será sempre importante - vive dentro da gente, na força da lembrança e no indefinível sentir da saudade.

Viverá para sempre o menino. Para sempre permanecerá espiando a vida e o tempo, lá da janela do sobradão, na rua Coronel Celestino, antiga rua Bela Vista. E viverá para sempre o Velho sobradão da rua de Baixo / Rua toda feita de saudade / Onde ficou a minha infância / E a minha mocidade.


GENTE DE MINAS
O CASO DO BURRINHO DA PREFEITURA

Karla Celene Campos
Cadeira N. 14
Patrono: Arthur Jardim de Castro Gomes

Minas é o Interior. Interior de Minas é o sertão. E sertão é o Norte, com sua chuva pequena, seu sol sem juízo, suas músicas e danças, sua cachaça, seu artesanato, seu pequi com carne de sol, seus causos e, principalmente, sua história e sua gente.

O que esta crônica deseja, mais do que registrar um causo para que ele não se perca como papel amarelado num arquivo qualquer, é servir de testemunha da sensibilidade de um Prefeito do Norte de Minas - mais precisamente da cidade de Mirabela -, que soube tão bem entender as agruras do Burrinho da Prefeitura, afável criatura que atendia pelo nome de Pássaro Preto.

Acredito ser um desperdício deixar passar a oportunidade de registrar nas letras a criatividade e a ironia do alcaide do município de Mirabela. Afinal, mais do que sensibilidade, é preciso dispor de muito talento para traduzir para a linguagem dos humanos as indignações legítimas de um representante de uma espécie maldosamente classificada como burra. E o nosso Prefeito fez mais: vencendo a burocracia e a lentidão inerentes a tais tipos de solicitações, deu de imediato despacho favorável à causa do requerente.

O Prefeito já não está entre nós - por decisão própria, apressou sua viagem para o reino dos encantados. Pela própria informação que nos dada por Pássaro Preto, advinda do conhecimento obtido nas enciclopédias acerca do efêmero que ronda a vida daqueles de sua espécie (e da nossa, diga-se de passagem) -, ele também já não deve estar entre nós.

Cabem-nos, então, três tarefas: elevar o pensamento para que ambos estejam agora num mundo mais justo; resgatar dos arquivos do município de Mirabela esse documento; e agradecer à mirabelense Camila, que sabiamente concluiu que poderíamos reverenciar as memórias do Prefeito e do Burrinho tornando público este documento, um requerimento de aposentadoria muito especial. Vamos a ele:

Mirabela, 31 de dezembro de 1982

Exmo. Sr. Dr. Felisberto Costa Filho
DD. Prefeito Municipal de Mirabela – MG

O abaixo-assinado, ou melhor, patado, brasileiro, solteiro, castrado (covardemente, aos dois anos de idade), funcionário público municipal, residente e domiciliado neste município, vem, de acordo com meu próprio discernimento e raciocínio, REQUERER a V. Excia. minha APOSENTADORIA pelos fatos lógicos e fundamentos jurídicos a seguir expostos:

1 - Em meados de 1962, com a idade de mais ou menos 2 anos presumíveis - pois não fui registrado em cartório -, estava eu residindo mansamente na Fazenda Barroca D'Água, com meu amo e patrão José Lopes Neto, quando fui traiçoeiramente laçado, amarrado com cordas de couro cru torcido, arreado inclusive com peitoral e rabicho, para ser amansado e ser animal de serviço;

2 - não me dei bem com tal ousadia, desaforo e maus tratos, mesmo porque sendo um muar preto, filho de uma égua e de um jegue, sei que a escravidão se extinguiu neste país desde o reinado da Princesa Izabel e me rebelei e não aceitei sela nem
homem nenhum em cima de meu lombo;

3 - naquela época, houve a primeira eleição para Prefeito em Mirabela e fui vendido para a Prefeitura Municipal, tendo me comprado o Prefeito Juca Gomes, genro de meu patrão Zezé Lopes, porque viram que eu não era lá de muito serviço e que deveria ser funcionário público. Mas, antes de me trazerem para o “comércio”, depois que eu havia dado muitos tombos em amansadores famosos, acompanhados de alguns coices, me amarraram as quatro patas e me castraram de faca e colocaram sal. Sofri como um desvalido com aquela brutalidade, mas a Natureza estava do meu lado e em breve estava recuperado, embora muito triste, porque tinham-me tirado os “documentos”, sem possibilidades de 2a. via.

4 - Trouxeram-me para o “comércio”e colocaram-me na carroça de lixo. Pintei o diabo nos primeiros tempos, mas depois notei que os meus “protestos” serviam de desculpas para o carroceiro não trabalhar. O dia em que eu amanhecia endiabrado, o homem logo notava e me deixava em paz. Daí eu ter descoberto - bom mestre, melhor discípulo - que no serviço público, salvo honrosas exceções, a gente trabalha mesmo é quando quer ou quando o chefe é do tipo quadrado ou enquadrado, sei lá.

5 - Nestes vinte anos de serviço público, mesmo sendo um turbulento e ferrenho oposicionista, prestei relevantes serviços à comuna mirabelense, até porque após as 17 horas, depois de encerrado o expediente, eu furava qualquer cerca e pastava nos melhores quintais, limpando-os. Após 1973, com a chegada da CEMIG, tive algumas dificuldades à noite - tudo muito claro -, mas sempre soube me defender: em algumas ruas não havia iluminação e, apenas para argumentar, para que é que BURRO sabe dar coice? Não é sua defesa? Então pronto!

Assim exposto, contando com 20 (vinte) anos de serviço (na ponta do lápis dá mesmo é uns 8 anos), mas eu sempre estava à disposição do patrão, conforme preceitos da CLT e o difícil - aí eu ria pra valer - era o carroceiro descobrir em qual quintal eu estava - REQUEIRO a V. Excia. a minha APOSENTADORIA, pois, segundo as enciclopédias, os muares vivem mais ou menos 25 anos e estou beirando essa “divisa” e ainda quero e preciso viver algum tempo, ao menos para relembrar em paz as raivas que fiz Zezinho Carroceiro passar e rir um pouco com meus velhos cacos de dentes que ainda restam - ninguém se lembrou de um bom dentista para mim... Agora, já não dá mais reforma.

Quase me esquecia de dizer a V. Excia. que já fui preto; hoje, estou quase todo “russo”.

Cá entre nós, Senhor Prefeito, como despachará V. Excia. este meu pedido, se é o único no Brasil e não há lei nem jurisprudência a respeito do assunto? Será que terminar num matadouro que existe pelas bandas de Curvelo, como já me deram notícias alguns familiares meus que passaram por aqui em caminhões? NUNCA! V.Excia. não vai deixar isto acontecer! Seu coração é generoso.

De tudo que foi dito, uma coisa é certa: tenho e mereço o direito aqui pleiteado. E tenho alguns milhares de testemunhas a meu favor, nem que seja pelo Código de Proteção aos Animais.

Nestes termos, pede deferimento.

Assinado (Patado) a rogo por ser analfabeto de pai e mãe.

BURRINHO PRETO DA PREFEITURA - Apelidado de PÁSSARO PRETO

P.S. Dê lembranças aos meus colegas.
* * *

Podemos imaginar um Prefeito comovido, sensibilizado e seguro de si ao acrescentar, de próprio punho, no documento, o seguinte despacho:

DESPACHO: Defiro de plano o presente requerimento, por ser de inteira clareza e justiça, sem necessidades de cumprimentos de outras formalidades legais, aplicáveis a outras categorias do serviço público.

Mirabela, 31 de dezembro de 1982.

Felisberto Costa Filho
Prefeito Municipal


“MONTES CLAROS”, UMA HIPÓTESE

Lázaro Francisco Sena
Cadeira N. 55
Patrono: João Luiz de Almeida

De vez em quando vem à tona a discussão sobre a origem do belo nome de nossa cidade e município, MONTESS CLAROS. Se buscarmos explicações com os historiadores locais mais antigos, como Urbino Viana, vamos encontrar, em sua “Monografia Histórica, Geográfica e Descritiva do Município de Montes Claros”, publicada em 1916, a afirmação de que “A Fazenda dos Montes Claros ficou situada à margem do rio Verde
Grande, próxima a montes formados de xistos calcáreos, despidos de vegetação, e dos quais a vista se pode alongar indefinida num horizonte límpido, estando os ´montes` sempre ´claros`, característica de onde proveio, dizem, o nome à fazenda, servindo depois à cidade que, primitivamente, foi Vila de Montes Claros de Formigas.” Mais recente foi a publicação, em 1957, da obra magistral de Hermes de Paula, “Montes Claros, sua História, sua Gente e seus Costumes”, onde o autor corrobora a explicação anterior, ao afirmar que “A ausência constante de nuvens baixas ou cerrações permite que o observador alongue a vista indefinidamente em horizonte límpido, onde os 'montes' se apresentam sempre 'claros'. E em favor de nossa opinião vem a maneira pela qual se enunciava o nome da primitiva fazenda – Fazenda dos Montes Claros.” Outros estudiosos do assunto,
embora com a mesma relutância dos dois autores citados, terminam por se acomodarem com a explicação. Dizemos que Urbino Viana foi relutante, quando cravou a expressão “dizem”, no meio de sua afirmativa; e Hermes de Paula também não supera nossa dúvida, ao ilustrar a sua com uma espécie de “habeas
corpus” preventivo, “em favor de nossa opinião”.

Ora, por que o questionamento deste assunto, se temos um topônimo de tanta expressividade, ao ponto de envaidecer os mais empedernidos corações nativos? Por que duvidar da claridade da serrania que circunda nossa cidade? Porque, geograficamente, nem a cidade e nem o município têm montes, na acepção mais comum da palavra, significando considerável elevação do terreno acima do solo que o rodeia. Podemos exemplificar até mesmo com o monte EVERESTE, o mais alto da terra, passando pelo monte BRANCO, o maior da Europa, e chegando até aquele que talvez seja o único representante de nossa região, o monte AZUL. O que temos em abundância são apenas morros, ou montes pouco elevados, mas são morros, modestamente. É o caso do morro do CHAPÉU, morro VERMELHO, morro DOIS IRMÃOS, ou do menor ainda em nossa cidade, por isso mesmo chamado apenas de MORRINHO.
Assim, entendemos que a grande diferença entre monte e morro é que o primeiro se pode avistar de longa distância, enquanto que o segundo desaparece de nossas vistas, logo que transpomos qualquer elevação. E o morro DOIS IRMÃOS somente é visível de algumas partes da cidade, em suas imediações.

Não estamos querendo, com esta nossa dúvida, rebaixar o pacífico morro DOIS IRMÃOS, aqui mostrado na Figura nº 01, que tão bem simboliza Montes Claros em suas representações oficiais, quer seja na Bandeira, no Brasão, nos documentos de qualquer natureza ou, mais ainda, no coração de sua gente. Que ele continue sempre altaneiro, com os seus dois “picos” apontados para o céu, e vaidoso de sua promoção a monte, embora já esteja sendo dilapidado e desfigurado, paulatinamente, pela indústria cimenteira local, correndo o risco de desaparecer a médio prazo, sob a cômoda cumplicidade de todos nós. O que estamos buscando é uma explicação mais
convincente para a origem do nome MONTES CLAROS, o seu real significado histórico.


Figura 1 - Morro Dois Irmãos.

Os bons dicionários e a inevitável comunicação diária permitem-nos empregar a palavra “monte” em diversas outras situações, tais como monte de problemas, monte de lixo, monte de terra e até monte de gente. Nem somente o homem faz os seus montes de terra, mas também os animais, como os cupins, as formigas..., sim, as formigas e os cupins são caprichosos nos seus montes, pois eles constituem a sua morada, ou parte dela, já que, para as formigas, servem apenas de proteção e de decoração. Normalmente são invariáveis na forma, mas nas cores assumem a tonalidade do subsolo, quase sempre diferente da camada superficial, podendo ser vermelhos, escuros, claros e outras variações. A figura nº 02 mostra uns montes claros de cupim,
recentemente fotografados numa localidade próxima, que poderia chamar-se Fazenda dos Montes Claros, nome idêntico ao de uma parte da sesmaria concedida ao bandeirante Antônio
Gonçalves Figueira, pelo alvará de 12 de abril de 1707. A figura nº 03 mostra um monte de formiga que, embora raro, ainda existe, de coloração mais escura, do jeito que é a terra no subsolo.


Figura nº 02 - Mostra uns montes claros de cupim.

Conforme se pode verificar em relatos e documentos históricos, a família Figueira não teve sucesso duradouro com a administração da fazenda, razão de sua venda ao Alferes José Lopes de Carvalho, em 27 de setembro de 1768. Sentindo a necessidade de serviços religiosos mais próximos, o Alferes fez doação de uma parte de sua terra, como patrimônio para construção da Capela de Nossa Senhora da Conceição e São José, limitado ao Sul pela passagem das formigas, de acordo com escritura passada em 19 de junho de 1769. Deve ter sido essa uma das primeiras referências, por escrito, a um acidente geográfico com o nome de formigas. Em torno dessa capela formou-se o arraial que viria a ser conhecido pelo mesmo epíteto, face à quantidade e influência desse inseto sobre a vida das pessoas, fazendo esquecer a primeira designação, para se transformar em Arraial das Formigas, naturalmente de domínio público, mas sem registro em documentos oficiais. Com o desenvolvimento e crescimento da povoação, foi o arraial elevado à categoria de vila, por decreto imperial datado de 13 de outubro de 1831, que estabeleceu também a autonomia política e administrativa do município, agora de nome novo, conjugando as duas denominações anteriores: Vila de Montes Claros de Formigas. Esse foi o topônimo oficial do município e sua sede administrativa até a elevação da vila à categoria de cidade, através de lei provincial de 03 de julho de 1857, agora com o belo e definitivo nome: Cidade de Montes Claros, ou simplesmente MONTES CLAROS.

Após estas considerações gerais sobre a transformação da fazenda em cidade de Montes Claros, passando pelo arraial de Nossa Senhora da Conceição e São José de Formigas e vila de Montes Claros de Formigas, podemos afirmar, com toda convicção, que não foram os “montes despidos de vegetação”, ou “sempre descobertos de nuvens baixas ou cerrações”, que deram origem ao belo nome de nossa terra, mesmo porque, além de aqui não existirem montes propriamente ditos, as pequenas serras e morros existentes em nada se distinguem de outros da região, estando todos sujeitos ao mesmo clima e à mesma vegetação. Se bem atentarmos ao nome da vila, aí vamos perceber um pequeno detalhe ou sutileza lingüística que trabalha em favor de nossa idéia. Em todos os registros existentes, está bem claro: Vila de Montes Claros DE Formigas e não DAS Formigas. Isso quer dizer que os montes considerados eram de formigas – ou de cupins -, formados por elas – ou por eles -, e não necessariamente porque aqui existiam tais insetos em abundância. Quando se fala Serra DAS Araras, Lagoa DOS Patos, Monte DAS Oliveiras e tantos mais quantos se quiser, não temos dúvidas, foi a presença dessas aves ou árvores que fez surgir os nomes dos acidentes
geográficos. MONTES CLAROS, a fazenda, a vila e a cidade, nunca foi DAS FORMIGAS. Apenas o arraial, que surgiu após o crepúsculo dos Figueiras e com o alvorecer do Alferes José Lopes de Carvalho, pode ostentar esta condição, de Arraial DAS

Formigas, pois a luz da emancipação política, em 1831, veio para clarear principalmente as idéias de todos os que somos montesclarenses, quer seja por nascimento, quer seja por adoção.


Figura nº 03 - Mostra um formigueiro que, embora raro,
ainda existe, de coloração mais escura.


LUZIA BURRA

Luiz de Paula Ferreira
Cadeira N. 19
Patrono: Caio Mário Lafetá

Ao chegar à nossa casa ela já carregava esse nome pouco recomendável. Luzia Burra. Morena, grandalhona, pescoço curto e grosso. Logo nos primeiros dias deu para ver que a inteligência não era uma de suas poucas virtudes. A Luzia fazia jus ao nome que carregava. Era burra mesmo.

Minha mulher perguntou-me:

- Que você acha? Vamos deixá-la completar um mês?

Dei de ombros, como Pilatos deve ter feito inúmeras vezes. E opinei:

- Olha, meu bem. Empregada doméstica está muito difícil. Se esta for honesta, como dizem, vá agüentando até aparecer coisa melhor.

E assim Luzia Burra foi ficando.

De nossa parte tínhamos mais em que pensar.

Minha mulher cultivava um sonho. Ela contava que em casa de seus pais havia um relógio, desses de pesos e pedestal, e que toda a família se criara ouvindo a música dos quartos de hora e das horas dele. E estava sempre a dizer que gostaria muito de voltar a ouvir essa doce música das horas. Era vontade sua que nossos filhos também fossem criados a ouvi-la. E fazia questão de que fosse um relógio antigo, igual ou semelhante ao de seus pais.

Fiquei com a idéia. E o tempo foi passando. De vez em quando minha esposa voltava a cobrar a aquisição do relógio.

Um dia tudo deu certo. Pelo menos a princípio.

Um amigo convidou-me a ver algo a que chamara de duas preciosidades.

Fui a seu escritório e encontrei-o a espanar dois antigos relógios de pesos. O meu amigo estava radiante.

- Veja que felicidade. Foram adquiridos em 1914, quando a empresa foi constituída. Há cerca de dez anos, diretores novos implicaram com a constante marcação dos quartos de hora e eles foram recolhidos ao almoxarifado, de onde agora os mandei retirar. Quero vender um deles a você. Pode escolher.

Escolhi o que me pareceu melhor conservado, com mais de 2 metros de altura, mostrador perfeito, de bom diâmetro e três robustos pesos metálicos. Pareceu-me uma boa peça de relojoaria.

O meu amigo mandou aplicar novo verniz na caixa de madeira, limpar os pesos e correntes e lubrificar o mecanismo. E me entregou a preciosidade.

Fiz uma surpresa à minha mulher.

Sabendo que ela fora almoçar em casa de uma irmã, mandei trazer e instalar o relógio na sala de visitas. À tarde, quando ela chegou, encontrou o relógio. Foi aquela alegria!

Faz três anos. O relógio funcionou bem durante um ano ou pouco mais. Depois ficou mudo. Marcava as horas em silêncio. O peso do meio descia, vagarosamente, impulsionando o funcionamento dos ponteiros. E os outros dois permaneciam paradões, atrás do vidro que os abrigava.

Na ocasião procurei o melhor relojoeiro da cidade. Ele levou o relógio para sua oficina, desmontou-o peça por peça e tornou a montar. Seu veredicto: “não tem jeito. O caso é desgaste das engrenagens e dos eixos. A fábrica já não existe mais, não há como fazer a reposição das peças.”

Procurei outros relojoeiros. A resposta foi a mesma. O ultimo deles me disse:

- O senhor pode mandar reproduzir as peças artesanalmente. Mas não é um serviço garantido. Além disso vai pagar o preço de dois relógios novos.

Dava pena ver a tristeza de minha esposa. Mas que fazer? O jeito seria nos conformarmos em ter o relógio como simples marcador de horas. E como peça decorativa. Não atendia ao sonho dela. Mas já era alguma coisa.

Num domingo, pouco tempo depois de havermos empregado a Luzia Burra, fomos passar a tarde em um sítio próximo à cidade. Voltamos ao anoitecer. Entramos pela garagem e, ao chegarmos à copa, algo aconteceu que nos espantou a todos. Da sala de visitas veio nitidamente a música dos carrilhões e em seguida a batida das 7 horas.

Olhamos uns para os outros, tomados da maior surpresa. E como se obedecêssemos a uma ordem, corremos todos para a sala de visitas. Lá estava o relógio, com seu clac-clac pausado, o pêndulo dourado brilhando, a oscilar compassadamente, e os ponteiros a marcarem, no mostrador de algarismos romanos, a hora vespertina.

Conferi com meu relógio de pulso. Estavam certos ambos. Eram 19 horas.

Uma maravilha!

Minha mulher e os filhos estavam perplexos. Que teria acontecido em nossa ausência?

A Luzia Burra deveria saber. Chamei-a.

- Luzia, esteve alguém aqui enquanto estivemos fora?

- Não, senhor. Não veio ninguém aqui.

Pus-me a tamborilar com os dedos sobre a mesa, da qual me havia aproximado. Não sabia em que pensar. E a seguir fiz uma pergunta que eu próprio considerei mais do que descabida:

- Luzia, você mexeu no relógio?

- Não, senhor. Eu só pus ele pra andar...

Uma alegria súbita tomou conta de todos nós. De minha parte, deu-me vontade de abraçar aquela tora maciça de burrice concentrada e sair dançando com ela, mesmo sem música. Mas me contive e a aplaudi com calculada moderação:

- Muito bem, Luzia. Valeu!

Após o jantar, esperei que a Luzia terminasse o seu serviço. E chamei-a. Estava mais do que curioso. Queria saber o que ela fizera para pôr o relógio a funcionar.

Quando a Luzia chegou, a enxugar as mãos no avental e a estampar no rosto aquela sua burrice tão natural, tão honesta e tão pura, não tive coragem de invadir com perguntas suspeitosas o sacrário de sua privacidade. Nada lhe perguntei. O que fez e o que não fez. Contive a curiosidade e pedi-lhe um copo d'água.
Preferi usufruir em silêncio a felicidade de ver o relógio a
funcionar como novo.

Diz o povo que não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe.

O tempo passou. Luzia quis regressar para o seu povo, na roça, e para lá se foi. Algum tempo depois soubemos que ela havia voltado e estava trabalhando em uma padaria.

No ano seguinte decidimos refazer a pintura da casa. E levamos todos os móveis para o porão. Terminado o serviço, voltamos os móveis para seus lugares. Ficou tudo bonito. Cada móvel em seu lugar, as paredes lindas, com pintura nova. Mas, ó Deus! O relógio emudecera.

A consternação foi geral. Todos nós havíamos nos afeiçoado à musicalidade daquele precioso medidor do tempo.

De minha parte tomei uma decisão. Deixem comigo, eu disse. Já sei como é isso. O segredo está no equilíbrio da caixa. Nada tem a ver com engrenagens e eixos. O negócio é puxar um pouco pra cá, um pouco pra lá, com paciência, até encontrar a posição correta. Deixem comigo. Sábado à tarde cuidarei disso.

Sábado chegou. Passei a tarde do sábado e a manhã do domingo nesse puxa-puxa. O resultado foi zero. Entreguei os pontos.

Segunda-feira pela manhã minha mulher começou a busca à Luzia Burra. A última notícia que tínhamos era sobre o emprego na padaria. Já não estava mais lá. Mas de indagação em indagação e ao fim de três dias de procura, minha mulher acabou dando com ela em casa de uma tia. Estava de mala pronta para embarcar para São Paulo. Foi dali que conseguimos trazer a Luzia de volta à nossa casa.

Era uma sexta-feira. No dia seguinte, de manhã, saímos para o sítio. Antes de sairmos minha mulher falou:

- Luzia, se você tiver tempo, faça uma limpeza no relógio.

Quando regressamos, à tarde, o primeiro som que ouvimos, ao entrar em casa, foi a tão grata e desejada música dos carrilhões.

Graças a Deus!

Naquele momento, firmei um propósito. Enquanto eu viver e aquele relógio existir, Luzia Burra não sairá desta casa.

Há pessoas que possuem o dom a que o povo dá o nome de “mão boa”. É mão boa para cuidar de plantas. Ou para temperar comida. Ou cuidar de passarinhos. E assim por diante.

Luzia Burra tem a mão boa para cuidar de relógios.

É o seu bem de nascença.

Que Deus a abençoe e guarde.


BOCAIÚVA, GOSTO MESMO É DE VOCÊ

Maria Clara Lage Vieira
Cadeira N. 100
Patrono: Wan-Dick Dumont

O título é um "slogan" de uma campanha política, mas coube exatamente no coração das pessoas que gostam da cidade. Poderíamos dizer como antigamente o povo dizia: "Assentou que nem uma luva". É que as pessoas gostam mesmo da cidade. Há quem diga que "quem bebe da água de Bocaiúva pode até ir embora, mas volta. Observando a vida de uma cidade, percebemos que ela vive como um ser humano: vibra de alegria,
mostra seus valores, cresce, mas também tem suas horas de escuridão.

Assim é Bocaiúva.

Na infância, tínhamos um tênue conhecimento sobre ela. Assim como a criança ouve falar de uma pessoa desconhecida que ficou famosa e, em sua imaginação, faz uma vaga imagem dela, também nós ouvimos falar que, lá no Norte de Minas, numa cidadezinha chamada Bocaiúva, o eclipse do sol estava sendo visível sob um ângulo mais amplo e cientistas americanos estavam se dirigindo para lá, a fim de estudar o fenômeno. Muitos anos se passaram para que ficássemos conhecendo Bocaiúva. Quando aqui chegamos, ele era acanhadinha, mas destacava-se nela um imenso calor humano que superava as deficiências: o povo era solidário. Sabia e sabe, como nos ensina o Evangelho, "alegrar-se com os que se alegram e chorar com os que choram".

A cidade, de início, um povoado, nasceu com o latifúndio de Faustino Leite Pereira (1710). Como a terra era fértil, devagar foram se formando novos latifúndios por toda a região.

O primeiro nome do município foi Curato de Macaúbas e isto se deu porque a esposa de Faustino Leite Pereira doou parte de suas terras para o patrimônio de uma Igreja, em honra ao Senhor do Bonfim.

A história, como ciência, não reconhece a origem da imagem que aqui apareceu nos primórdios do povoado. Mas, a história, como tradição oral, conta que tropeiros traziam a imagem de São Paulo com destino à Bahia, imagem esta oriunda de Portugal. Passando por aqui, os tropeiros pararam para descansar, deixando a imagem à sombra de uma gameleira.

Ao prosseguirem viagem, verificaram que a imagem ficou muito pesada, impossível de ser removida.

A sabedoria popular e a índole religiosa entenderam que Jesus quis que sua imagem de Crucificado ficasse aqui para ser venerada pelos habitantes do lugar.

Assim, logo se dispuseram a erigir uma capelinha modesta para abrigar a imagem e o Senhor do Bonfim, nome que os devotos deram ao Cristo Crucificado, ficou sendo o padroeiro do povoado que foi crescendo ao redor da capela.

E, desde então, há a festa do padroeiro no início de julho.

Em 1966, quando chegamos a Bocaiúva, pude testemunhar um fato interessante que acontecia aqui e o retratamos em um capítulo do livro de nossa autoria, "WANDYCK,
PINTOR DE SIMPATIA. Eis a narrativa:

“Começo de junho. Desde fins de maio, o frio começou. Mas não é um frio rigoroso. Somente de madrugada é que ele incomoda”.

Corre o ano de 1966. Há mais de um ano estamos sob a ditadura militar. Nas grandes cidades desse nosso pobre "gigante pela própria natureza", não se pode reunir por nada, aglomeração em ruas e praças significa atentado aos poderes! instituídos e, portanto, cabe aprisionamento. Também não se pode "conversar demais": as janelas, as portas, as paredes têm ouvidos.

Mas isto não importa, pois começa junho e estamos em Bocaiúva, município privilegiado, apesar da seca, porque correm em suas terras, de sul para oeste, as águas do rio Jequitaí, pertencente à bacia do São Francisco e, de sudeste para leste, as águas do rio Jequitinhonha, pertencente à bacia do leste.

No nosso país tropical, a primavera começa em setembro. Chega de mansinho, anunciando-se aos poucos.

Diante da sequidão do ar e da vegetação, surge, aqui e ali, o colorido maravilhoso de um ipê, roxo ou amarelo. Depois, as buganvílias tomam coragem e, enchendo-se de flores, pintamse de vermelho, roxo, laranja, amarelo, branco, misturando-se com o verde de suas folhas. É assim, devagarinho, que chega a primavera em Bocaiúva, que se localiza nas imediações da região em que o rio São Francisco desliza, sereno, no seu curso médio.

Mas, por que estamos falando de primavera, se estamos no começo de junho? É que, nesta época, em Bocaiúva, acontece uma primavera "sui generis". Devagarinho também, como a primavera da natureza, Bocaiúva se enfeita.

Algum tempo antes, as casas reformam-se, revestem-se de uma roupagem nova, pintam-se de cores mais alegres, porque o sol do sertão lhes queima as cores. As ruas ficam mais limpas. Tudo vai adquirindo um ar festivo.

As pessoas, na rua, se cumprimentam e conversam mais animadamente, comentando sobre alguma coisa de muito bom que está para acontecer.

E dentro de casa? É uma azáfama. O pai de família dá o último retoque na recuperação de algum objeto ou móvel que merece cuidado. A mãe se esmera na confecção de doces em calda, laranja e mamão cristalizados, goiabada em pasta ou em ponto de cortar, biscoitos, os mais apetitosos e variados. E o licor de pequi, guardado desde o início do ano? Ah! Uma delícia!

Os rapazes ajudam os pais nos preparativos que exigem a força masculina e as moças trabalham com a mãe na cozinha e no toque feminino, que torna a casa mais aconchegante.

Mas a hora melhor para elas é quando podem descansar um pouco e chegam à janela e sonham... Sonham com os bailes que já se anunciam e com a presença de um "príncipe encantado".

As crianças ficam alvoroçadas. Quando vêem a movimentação dos adultos, ficam contagiadas e querem ajudar também. Todos têm uma obrigação, todos dão a sua participação.

As escolas adiantam seus trabalhos letivos para que todos, do aluno ao professor, do diretor ao serviçal, estejam disponíveis para participarem de tão esperado evento. Expectativa - e das boas - é a característica de todo bocaiuvense nessa época. Mas, por que tudo isso?

Dizem que antigos romeiros, transportando a imagem de Cristo Crucificado, O Senhor do Bonfim, de São Paulo para a Bahia, passaram por estas paragens e, como vinham a cavalo e a viagem era longa, resolveram descansar à sombra de uma gameleira frondosa, árvore comum na região.

Quando se levantaram para prosseguir, perceberam que a imagem estava pesadíssima. Não conseguiram, por mais que tentassem, removê-la daquele lugar. Concluíram então que Deus queria que essa imagem ficasse ali.

Logo se erigiu uma capela para a imagem e o lugar ficou conhecido como a !terra do Senhor do Bonfim". Aqui foi se formando um povoado que, mais tarde, recebeu o nome de Curato de Macaúbas. E, como o fato teria se dado no princípio de julho, convencionou-se comemorar a festa do Senhor do Bonfim no primeiro domingo de julho. A tradição ficou. Em 1966, a festa prometia muito. Que festa! Três noites de baile com o conjunto de Túlio Silva, de Belo Horizonte, contratado exclusivamente para Bocaiúva.

E mais nove dias de orações em louvor ao padroeiro e barraquinhas em benefício das obras da igreja.

A cada dia, chegam romeiros, pessoas que vêm pedir benefícios ao Senhor, pessoas que vêm cumprir promessa e parentes que, fazendo pedidos ou cumprindo promessas, aproveitam a ocasião para rever seus entes queridos.

As costureiras se desdobram no seu ofício porque todas as pessoas querem usar roupas novas. É um ponto de honra: do rico ao pobre, do velho ao jovem ou criança, todos devem estrear um vestido, um terno, um sapato, uma camisa nova.

A festa social culmina com o baile do domingo que, atravessando a madrugada, obriga as autoridades a decretarem feriado na segunda-feira. O ponto alto da festa religiosa é a subida do mastro na noite de sábado e a procissão do Domingo.

D. Benzinha (Ah! Que mulher dinâmica e admirável!), que já havia trabalhado durante os nove dias nas barraquinhas, se esmera em apresentar os quadros vivos da vida de Cristo na procissão.

Ah! Bocaiúva! Há quem diga que teu nome se deve a uma homenagem a Quintino Bocaiúva, que foi ministro das Relações Exteriores do Governo Provisório de 1890.

Mas o velho Romeu Barcelos Costa, carioca de nascimento e bocaiuvense por adoção e que conhecia tua história melhor que muito filho da terra, afirmava que teu nome deriva de uma variante da palavra Macaúba, que designa uma espécie de palmeira muito freqüente na paisagem da região. E é esta teoria que nos parece acertada.

A tradição da festa se perdeu no tempo. Hoje, já não se notam as mudanças gradativas no rosto da cidade e das pessoas.

Mas, afinal, tempo é convenção. Pois já não criaram uma série de filmes com o título: "De volta para o futuro"? Como é que pode? Pode, sim. E pode também estar de volta para o passado. Basta a nossa imaginação querer.

Alguém dirá:

Quem gosta de passado é museu.

Concordamos. Mas quem garante que os museus não nos dão grandes lições de vida? Portanto, é começo de junho de 1966 e estamos em Bocaiúva, em plena preparação tradicional para a festa do Senhor do Bonfim.

Tudo respira e transpira alegria, entusiasmo e animação.

A narrativa foi escrita em 1966, reportando-se a fatos de 1966. Estamos agora no século XXI. Muita coisa mudou, é claro.

Eliane Maria Fernandes Ribeiro, em seu livro "Bocaiúva, Sociedade e Espaço" (Graphilivros Editores Ltda., Belo Horizonte, 1988, página ll), diz que "A paisagem urbana retrata as transformações sociais e econômicas por que passou o município".

Acrescentaríamos que a tecnologia do século XXI também já deixou e deixa marcas de transformação no rosto da cidade.

A festa do Senhor do Bonfim se repete a cada ano. Modifica-se com o correr dos anos, mas o fervor e a alegria do povo continua presente.

Louvor, agradecimento, pedidos ao padroeiro se misturam com a satisfação de poder receber parentes, amigos e romeiros para, juntos, agradecer e festejar. E não é só na época da Festa. Quem quiser visitar ou conhecer a cidade, faça isto, porque vai sentir que a hospitalidade é uma característica do povo bocaiuvense.

Venha conhecer o nosso povo e o nosso chão. Sua presença será uma festa para nós.


Estação Ferroviária - Bocaiúva/MG

 

FOTOGRÁFIA HISTÓRICA
Banda de Música Bocaiuvence do inicio do século XX.


DR. GEORGINO JORGE DE SOUZA
MEU MESTRE, MEU PATRONO

Maria da Glória Caxito Mameluque
Cadeira N. 40
Patrono: Georgino Jorge de Souza


Meu primeiro contato com o Dr. Georgino deu-se em 1963, quando meu marido era Prefeito em São Francisco e eu o procurei para solicitar a presença da Banda de Música do Batalhão em uma comemoração de aniversário da cidade. Ao entrar no seu gabinete, no antigo Colégio Tiradentes, senti-me até um pouco intimidada ao ver-me à frente daquela figura elegante, autoritária, imponente, que me recebeu com muita cordialidade e simpatia. Nunca poderia imaginar que nos anos seguintes nossa vida pudesse se entrelaçar em várias ocasiões, como aconteceu depois.

Cursando Direito na antiga FUNM, no prédio antigo, deparo-me novamente com ele, dessa vez em outra situação: ele, professor; eu, aluna. Suas aulas tornavam-se um espetáculo à parte, quando ele, entremeando as teorias do Direito Penal, mostrava-nos com toda sabedoria e eloqüência os casos e júris dos quais participava, trazendo para nós a prática penal e os meandros dos processos criminais. Suas aulas, esperadas com ansiedade, eram momentos de prazer e admiração pra todos nós seus alunos e até hoje lembro-me de várias de suas frases lapidares: “ o homem é um animal que só se comporta por causa das frenagens que lhe tolhem a ação, censurando o que ele pode e o que não pode fazer...”

Formada, eis que nossos escritórios ocupavam o mesmo prédio, o Edifício Ciosa e com ele me defrontava quase todos os dias. Sentia-me envaidecida quando ao cruzar com ele , me cumprimentava solenemente: “Como vai, doutora?” E de vez em quando eu escapava e ia ao escritório dele para trocarmos idéias , para pedir algum conselho ou até mesmo para ouvir suas histórias de vida, que com sua verve me deliciavam. E só ia lá quando tinha algum tempo disponível, porque ele me prendia por muito tempo, com suas histórias e confidências, que trocávamos como dois amigos...

Entre nós formou-se um vínculo muito grande: de professor e aluno, de colegas de profissão, de verdadeiros amigos. Tivemos oportunidade de atuarmos, eu , o meu marido e ele, em um caso muito complicado e por isso sempre nos reuníamos e chegamos a fazer várias viagens juntos, para tratar do caso. Em meus ouvidos ainda permanece a sua voz vibrante, dizendo-me que fomos vitoriosos.

Sempre que lia minhas crônicas publicadas nos jornais, ligava-me imediatamente para comentá-las. Quando lancei o livro “Crônicas do Cotidiano”, pedi a ele que fizesse o prefácio, que ele aceitou com alegria. Indicou-me à Academia Montesclarense de Letras, fazendo o discurso de apresentação na minha posse.

Quando tive oportunidade de escolher o meu patrono no Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros, minha opção caiu em meu mestre e amigo Dr.Georgino Jorge de Souza. Falar sobre ele é uma missão prazerosa e fácil, pois sua personalidade e seus feitos são de todos conhecidos e para tanto reporto-me a artigo escrito em setembro de 2000 pelo então Reitor da Universidade Estadual de Montes claros, Dr.José Geraldo de Freitas Drumond , passado às minhas mãos por sua família:

“Figura ímpar da historiografia norte mineira, Georgino Jorge de Souza é possuidor de denso e rico 'Curriculum Vitae' que costuma apresentar emblematicamente sumarizado em três títulos: Coronel PM, Professor Emérito da Universidade Estadual de Montes Claros e Advogado Militante. Esta foi a tríade com que o autor de 'Reminiscências de um Soldado de Polícia' quis sintetizar a sua longa, árdua e vencedora caminhada que tanto tem beneficiado a todos que, com ele, se relacionaram mas, e principalmente, às comunidades às quais serviu e até hoje se dedica. Nascido na cidade baiana de Guanambi, foi em Caitité, na mesma Bahia, que se promoveu nos cursos primário e normal, tornando-se professor, no ano de 1934.

Inquieto intelectualmente – virtude que permanece até os dias de hoje – Georgino Jorge de Souza muda-se para Minas Gerais e, em Belo Horizonte, ingressa no Curso de Formação de Oficiais da Polícia Militar de Minas Gerais, em 1940 se forma.

Sua inteligência e cultura continuam a ser buriladas pela Escola Técnica de Comércio de Belo Horizonte onde se gradua em 1957, e em 1960 no Curso de aperfeiçoamento de Oficiais da Polícia Militar de Minas Gerais. No entanto, era ainda pouco para a inteligência e a capacidade de servir do jovem Oficial da Polícia Militar de Minas Gerais, que não se contentava em ascender a todos os degraus da hierarquia militar, mas que aspirava ampliar a sua formação humanística. Um fato marcante em sua vida foi triunfar no vestibular de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo, onde recebeu o grau de bacharel, no ano de 1961, tendo sido o orador da turma.

Exerceu os cargos de Delegado Especial de Polícia em 68 cidades mineiras, no período correspondido entre 1943 a 1958; Sub-chefe da 4ª Seção do Estado Maior Geral da PM de Minas Gerais e de Comandante do 10º Batalhão de Infantaria da PMMG, sediado em Montes Claros.

Advogado militante em praticamente todas as Comarcas norte-mineiras, foi guindado por seus pares à presidência da 11º Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil, no período de 1979-81, tendo sido ainda presidente do Rotary Clube de Montes Claros.

Sua vocação docente iniciada na Bahia o acompanha em todas as suas atividades. Especificamente notabilizou-se por fundar e ser o primeiro diretor do Colégio Tiradentes da Polícia Militar, em Montes Claros, co-fundador da Faculdade de Direito do Norte de Minas, hoje compondo a Unimontes, onde ministrou os conteúdos de Direito Substantivo Penal durante 25 anos, tendo assumido a chefia do Departamento de Direito Substantivo por várias vezes, culminando a sua carreira universitária como diretor da nossa, então, Faculdade de Direito.

Sua brilhante carreira docente foi reconhecida com a insígnia de Professor Emérito da Universidade Estadual de Montes Claros, condecoração que veio se juntar a tantas outras, como a Medalha de Honra da Inconfidência – por méritos cívicos – a Medalha de Ouro da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, a Medalha de Prata Santos Dumont, todas as Medalhas de Mérito Militar (bronze, prata e ouro), a Medalha Tiradentes, Medalha do Bicentenário do Alferes Tiradentes, Medalha Baeso ( trinta anos de Maçonaria, grau 33) e tantas outras condecorações civis e militares, que tornam a figura de Georgino Jorge de Souza, lenda viva em todas as instituições por onde passou e junto a toda sociedade mineira.

É justo e salutar, portanto, que este mestre das armas, do direito da cidadania continue a nos privilegiar com as luzes do seu invulgar brilho intelectual, como acadêmico da Academia de Letras João Guimarães Rosa da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais e da Academia Montesclarense de Letras, cujas posses ocorreram em 10 de agosto e 23 de setembro de 2000, respectivamente.”

O grande mestre Dr.Georgino Jorge de Souza nos deixou em 27 de fevereiro de 2004.


Posse de Glorinha Mameluque na Academia Montesclarense de Letras,
quando foi apresentada pelo Dr.Georgino Jorge de Souza


Dr. Georgino Jorge de Souza


PAIXÃO POR DEUS

Maria das Mercês Paixão Guedes
Cadeira N. 73
Patrono: Lilia Câmara


A paixão, entre seus muitos conceitos, é definida como um sentimento ou emoção levados a um alto grau de intensidade, sobrepondo-se à lucidez e à razão. Quantos de nós não experimentamos um dia esse sentimento? Mas, a paixão também é um entusiasmo muito vivo por alguma coisa ou por alguém. Desde que Deus assumiu um corpo humano, tornou-se tão próximo, fascinante e encantador que não são poucos os que assumem viver essa paixão. Paixão capaz de transformar toda a vida, paixão forte e arrebatadora, paixão irresistível, paixão por Deus. O Carmelo é assim, no Carmelo vive-se assim. E isso há mais de oito séculos.

Tudo começou com um grupo de homens (apaixonados) decididos a entregar suas vidas por uma causa: reconquistar a Terra Santa, que fora ocupada pelos muçulmanos. Era o tempo das Cruzadas. Muitos desses homens passaram a viver eremiticamente, como o Profeta Elias (Antigo Testamento), no Monte Carmelo. E como a paixão é contagiante, inúmeros outros se uniram a este grupo, que recebeu aprovação de sua Regra de Vida pelo Papa Inocêncio IV, em 1247. Eram os primeiros carmelitas, Irmãos da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo.

O desejo de contemplar a Face do Senhor, a sede de solidão para estar a sós com o Só, com o Amor, com o Amado e a vida apostólica eram os indícios de que esta paixão não teria fim na primeira ventania que surgisse. Perseguições, martírios, sofrimentos de toda sorte, nada poderia deter o fogo divino que consumia os corações daqueles homens.

No séc. XV nasceu o ramo feminino. Em 1535, Teresa de Jesus ingressou no Carmelo e após vinte e sete anos de vida religiosa, ela foi amadurecendo em seu coração a sua opção radical por Deus. Seu tempo, o séc. XVI, é conhecido pelas crises econômicas, culturais, políticas e principalmente religiosas em todo o mundo. Teresa acompanhava as notícias de sua época e sofria muito. Sentia os apelos de Deus para fundar um mosteiro onde levassem vida de oração e fraternidade mais intensa, com um número reduzido de monjas, na solidão e no silêncio, com clausura mais rigorosa, pobreza, autêntica entrega e consagração ao Senhor em favor da Igreja. Dizendo sim a esse convite divino, surgiu o Carmelo Descalço (devido ao despojamento interior e exterior) ou Carmelo Teresiano, em 1562 na Espanha. Seis anos depois, auxiliada por João da Cruz, Teresa reformou também o ramo masculino da Ordem. E a paixão que invadia sua vida e abrasava sua alma foi como um incêndio ao seu redor. O Carmelo Descalço cresceu e se espalhou com força, rapidez e frutos de santidade.

Teresa faleceu em 1582, João da Cruz em 1591, porém o Carmelo Descalço seguiu mais vivo do que antes, impulsionado pelo ardor com que seus santos amaram Deus e os homens, e pelos seus escritos que deixaram toda uma rica e sólida doutrina a respeito da oração, da contemplação, da vida mística e união com Deus, união esta que não poderia ser senão amorosa. A árvore estava frondosa e dela brotaram Carmelos por todo o mundo. Cada vez maior número de homens e mulheres assumia sua paixão por Deus. Sementes dessa árvore caíram também no Brasil e, levadas pela brisa mansa e suave da graça, chegaram a Montes Claros no dia 8 de setembro de 1977, trinta anos atrás.

Aqui retornamos ao nosso ponto de partida: a paixão e suas conseqüências. O Carmelo Maria Mãe da Igreja e Paulo VI conta hoje com dezenove mulheres apaixonadas por Deus, entre 19 e 86 anos. Vivem retiradas, ocupadas na oração e no trabalho, na imolação e no sacrifício com a Igreja e pela Igreja, tendendo a alcançar aquele puro e solitário amor, que é mais precioso diante de Deus e de mais proveito do que tantas outras obras unidas. Elas rezam pelos que sofrem no corpo e na alma, pelo aumento das vocações sacerdotais e religiosas, pela unidade dos cristãos e evangelização dos povos. Têm espírito missionário, embora excluam qualquer forma de apostolado ativo.

Parece misteriosa essa maneira de se viver uma paixão. A que preço? Não será loucura ter desejos tão imensos? Nunca, desde que o Amor os tenha suscitado. É por isso que o Carmelo subsiste através dos séculos. Nele habitam a dor e a alegria, o amor e o sofrimento, pois nele vivem pessoas "normais", embora sua paixão por Deus tenha sido, aos olhos humanos, desmedida e em vão. Jovens continuam abraçando a clausura num mosteiro, vivendo de maneira simples e silenciosa a paixão que um dia invadiu suas almas. Elas foram envolvidas pelo Amor, amor incontido e inexplicável.

As Irmãs fundadoras do Carmelo em Montes Claros vieram dos Carmelos de Belo Horizonte e de Três Pontas. Em nosso meio ainda estão a Madre Maria Angélica da Eucaristia, a Irmã Maria Flávia de São José (atualmente ajudando ao Carmelo do Bonfim), a Irmã Maria Aparecida do Menino Jesus e a Irmã Maria Teresa Margarida do Sagrado Coração de Jesus (que entrou no dia da fundação). Deste Carmelo já saíram duas fundações, uma para o Senhor do Bonfim, na Bahia e outra para Coronel Fabriciano. Também enviaram Irmãs para ajudar em Carmelos na Terra Santa (Jerusalém e Haifa) e neste ano irão outras, em caridoso auxilio, para Carmelos na Espanha (Alba de Tormes e Valladolid). O amor rompe todas as fronteiras e é a língua universal, especialmente quando se trata de seguir Àquele que deixou o Amor como mandamento.

No final das contas, tal paixão por Deus não tem tanto segredo. Acontece sempre que abrimos o coração. Sejamos solteiros ou casados, jovens, crianças, adultos ou idosos... Todos temos sede do eterno, do amor incondicional. Amor que não nos tira nada, ao contrário, amor que nos dá tudo. É só ter coragem de deixar-se amar, de deixar-se conquistar e seduzir. Não é preciso morar num mosteiro para experimentar essa paixão vibrante e transformadora, contudo é preciso algum silêncio senão a única
paixão que experimentaremos será a paixão por nos mesmos.


JOSÉ GONÇALVES ULHÔA

Maria de Lourdes Chaves
Cadeira N. 65
Patrono: José Gonçalves Ulhôa

Nascido em Paraisópolis, Sul de Minas, após fazer o “curso de humanidades” em Pirassununga – São Paulo, o Instituto Granbery em Juiz de Fora e interromper o curso de Engenharia em Ouro Preto por motivos de saúde, vem para Montes Claros onde se estabelece definitivamente.

Fazendeiro, criador e agricultor, produz sementes de milho híbrido e sementes selecionadas de arroz, de 1968 a 1985, sendo membro da Associação dos Produtores de Sementes e mudas do Estado de Minas Gerais pelo mesmo período.

Produtor de carvão pelo sistema seletivo e sustentado do cerrado, deste 1984 é defensor entusiasta deste sistema, tendo sido um dos fundadores e o primeiro presidente da Associação Protetora do Pequi, criada na Festa Nacional do Pequi, em 1 de janeiro de 1988, em Montes Claros.

Como escritor e jornalista é autor de vários ensaios e artigos publicados em jornais locais, sendo membro efetivo da Academia Montes-clarense de Letras desde 1980.

Algumas de suas premiações:

Primeiro prêmio como produtor de sementes de arroz, na Exposição Agropecuária de Montes Claros em 1968, conferido pela comissão do Vale do Rio São Francisco.

Benemérito da Biblioteca Pública Municipal de Montes Claros, pela colaboração prestada na ampliação do acervo cultural, em 15/10/1977.

Diploma de Produtor Rural como modelo em conservação da natureza, em reconhecimento dos serviços que vem desenvolvendo em sua propriedade a favor da conservação dos recursos naturais renováveis, conferido pelo IEF-Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais, em 09/06/1987.

Diploma do mérito Florestal do Governo do Estado de Minas Gerais, em reconhecimento às relevantes atividades desenvolvidas em prol do reflorestamento em Minas Gerais, em 21/09/1987.

Certificado pela sua participação como conferencista no 2º Seminário Regional sobre a Conservação da Natureza em Januária-MG, em 22/10/1982, conferido pela Secretaria de Estado da Educação e Secretaria da Agricultura e pelo Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais.

Diploma de mérito de proteção à Natureza e dos Bens Culturais, por seu desempenho no trabalho em prol da proteção do meio ambiente, conferido pela Câmara Municipal de Montes Claros, na Festa Nacional do Pequi, em 08/01/1988.

Primeira medalha do Mérito Ecológico, homenagem da Câmara Municipal de Montes Claros, 21/09/1991.

Prêmio Sol 1991 em Ecologia, conferido pela Associação dos Repentistas e Poetas Populares do Norte de Minas.

Chegando a Montes Claros, conheceu a bonita moça Cecy Tupinambá com a qual se casou; aos 04/10/1952. Tiveram quatro filhos, 2 mulheres e 2 homens.

Homem temente a Deus, religioso, pai extremoso, bem educado, culto e simples. Defensor ardoroso da natureza. Muito dedicado à sua família, carinhoso, caridoso e trabalhador.

Era um homem do campo, gostava de ficar sempre em sua fazenda. Era desprendido dos bens materiais, nunca almejando riqueza, sua fortuna era seu lar, sua família. Sua vizinha por algum tempo, sempre o via passar às 6 horas da manhã, rumo à padaria. Este fato simples dava sua dimensão de homem devotado à sua família.

Na Academia Montesclarense de Letras, tinha como patrono o Cônego Chaves.

Escreveu o livro “Congresso dos Bichos” na qual exalta a natureza e demonstra sua grande preocupação com a biodiversidade, sua degradação abusiva pelo homem. Deixou escrito outro livro “Vida de cachorro” que não veio a lume.

Ele colaborava com publicações de artigos nos jornais de Montes Claros.

“Bem aventurado o homem que tem uma virtuosa mulher, porque dobrado será o número dos seus anos. Eclesiástico”

Bem aventurada a mulher, que tem um virtuoso homem. José Gonçalves Ulhôa, você era um deles.

Aos 13 de agosto de 2001, faleceu em Montes Claros, deixando uma clareira nos meios intelectuais e nos movimentos pró ecologia.


José Gonçalves Ulhôa


FRANCISCO SÁ

Maria Inês Silveira Carlos
Cadeira N. 38
Patrono: Francisco Sá

Pelo Decreto-Lei nº. 148 de 17 de dezembro de 1938, assinado pelo Interventor Federal Benedito Valadares Ribeiro, o município de Brejo das Almas passou a denominar-se Francisco Sá, tendo como primeiro prefeito o dr. Arthur Jardim de Castro
Gomes.

Quem foi Francisco Sá? É uma pergunta que a maioria do povo Francisco-saense não sabe responder. Na minha infância e juventude a única informação que tive a respeito de sua pessoa é que ele trouxe a estrada férrea até Montes Claros e que nada tinha feito por nós. E esta informação permaneceu por muito e muitos anos para mim e para a população brejeira. Talvez seja por isso que ainda gostamos tanto de ser chamados brejeiros e dizer que moramos no Brejo. Faltou e ainda falta interesse das autoridades e educadores para pesquisar e divulgar quem foi este homem que deu o seu nome à nossa cidade.

Resolvi sair à procura de dados que compusessem esse quebra-cabeça, tentando encaixar as peças do mosaico que formam a figura do, para nós, ainda desconhecido. O véu da minha ignorância foi aos poucos se dissipando e descobrindo quão grande foi o homem, o cidadão, o administrador e o político
Francisco Sá.

Francisco Sá nasceu na Fazenda Brejo de Santo André no dia 14 de setembro de 1862. Filho de Francisco José de Sá Filho (Brejo de Santo André, 1832-1868) e de Augustinha Josephina Vieira dos Santos Sá. Seu pai era filho do Coronel Francisco José
de Sá (1802-1894) e de Jacinta Francisca Veloso de Sá (1811- 1878). Sua mãe era filha de Josephino Vieira Machado, Barão de Guiacuhy (1812-1879) e Maria Sylvana dos Santos.

A fazenda Brejo de Santo André, de propriedade de seu avô Francisco José de Sá, pertencia ao município de Grão Mogol e hoje pertence ao nosso município.

Seu avô, Francisco José de Sá, era republicano e abolicionista. E teve a alegria de assistir à realização de um dos seus mais acariciados sonhos da mocidade de ver que muitos dos seus descendentes se elevarem as altas posições sociais e figurarem entre os dirigentes do país. Assim, era ainda vivo quando seu filho Carlos de Sá foi eleito Senador Republicano e dois de seus netos, o Dr. Francisco Sá e Camillo Prates, figuraram na Assembléia Provincial.

Francisco Sá formou-se em 1884 em engenharia pela Escola de Minas de Ouro Preto (MG), foi também industrial e jornalista e tinha o excelente dom da oratória. Era um homem nobre na origem e na vida pública, além de ser nome ilustre da engenharia brasileira foi um político com uma biografia invejável. Ministro da Viação por duas vezes, uma no governo Nilo Peçanha e a outra com Arthur Bernardes. Antes Francisco Sá, quando recém formado foi servir no estado do Ceará, na Estrada de Ferro de Baturité, oportunidade em que conheceu a jovem Olga Acioly, uma das filhas do representante do Ceará na Câmara Federal, o Comendador, oligarca e presidente do Ceará, Antônio Pinto Nogueira Acioly. Na primeira oportunidade ministerial, levou para o Ceará o recém criado IFOCS - que depois se transformaria no DNOCS e na segunda, a RVC (Rede de Viação Cearense).

Como Deputado Federal pelo Ceará revelou-se bom deputado, o que lhe valeu ser, posteriormente, ministro de Estado em duas oportunidades. Ao voltar para o sul (o sogro foi deposto), Francisco Sá continuou projetando-se no serviço público do Rio de Janeiro e Belo Horizonte, a ponto de se tornar, em ambas as capitais, nome de ruas. Em Fortaleza também é nome de uma grande avenida e de um município da zona norte do Ceará. Em Teófilo Otoni (MG) e Teresópolis (RJ) há ruas com seu nome. Montes Claros também o homenageou com uma bela avenida, onde nas proximidades está erguida a majestosa Catedral de Nossa Senhora Aparecida e, em uma de suas extremidades ( Praça da Estação), há um monumento em sua honra. Este monumento
tem uma base bastante extensa, tendo no centro uma coluna que sustenta a estátua. Na parte frontal da coluna há uma placa confeccionada em bronze onde se lê a seguinte homenagem:

A Francisco Sá
O Norte de Minas
14 de setembro de 1930.
... E em uma tarde
como esta, muito depois, as gerações
que a esta geração
succederem, diante
de seu monumento,
repetirão ainda:
Este foi o nosso melhor amigo

Nas partes laterais, no alto, uma placa que retrata a construção da estrada de ferro e mais duas com expressões em latim, do poeta Horácio.

Um dos mais antigos e respeitáveis educandários da cidade, por onde passaram nomes, que hoje se destacam na história de Montes Claros, e iniciaram o conhecimento das letras e dos números na Escola Estadual Francisco Sá.

Durante o período em que foi Ministro da Viação (1909- 1911) além de criar a IFOCS, organizou diversas redes ferroviárias e consegui o recorde de 2.225km de ferrovias em um só ano. Em 1910, bateu a primeira estaca na construção do ramal de Montes Claros, da Estrada de Ferro Central do Brasil. Voltou a ser Ministro da Viação entre 1922 e 1926, quando criou a Contadoria Geral dos Transportes e estabeleceu o primeiro regulamento de navegação aérea e de radiodifusão no Brasil.

Dentre suas obras mais importantes, principalmente para a cidade do Rio de Janeiro, destacam-se a eletrificação da Estrada de Ferro Corcovado, a reorganização da Inspetoria de Navegação e dos serviços postais e telegráficos e o saneamento da baixada Fluminense. No município do Rio de Janeiro fez melhorias no serviço de abastecimento de água e cuidou do aspecto paisagístico da Quinta da Boa Vista.

Francisco Sá foi Deputado Federal, Senador e Secretário de Agricultura de Minas Gerais, e se destacou, sobretudo, como administrador.

Cargos Públicos:

-Ministro de Estado da Viação/Governo Nilo Peçanha
-Ministro de Estado da Viação/Governo Arthur Bernardes
-Secretário do Presidente do Estado do Ceará
-Secretário de Agricultura de Minas Gerais
-Diretor de Terras e Colonização do Governo Affonso Pena

Mandatos:

Deputado Provincial 1888 a 1889
Deputado Geral 1889
Deputado Federal 1897 a 1899
Deputado Federal 1900 a 1902
Deputado Federal 1903 a 1905
Senador 1906 a 1909
Senador 1911 a 1915
Senador 1922 a 1927
Senador 1927 a 1930

Sendo um excelente orador, Francisco Sá empolgava a platéia com seus belos e calorosos discursos. Eis um trecho em uma de suas falas em que homenageou Pinheiro Machado, fundador do Partido Republicano Conservador: "Glorioso brasileiro, cuja vida foi exemplo contínuo de virtude intrépida e de são vigoroso patriotismo. Ninguém como ele, se devotou à Republica com tanto fervor e com tanta perseverança. Desde o apostolado que a preparou até à sua organização, à sua conservação nunca lhe faltaram o amor desvelado, a cuidadosa vigilância, a ação indefessa".

Realmente, Francisco Sá não destinou nenhuma obra específica ao município de Brejo das Almas, porém várias delas beneficiaram nosso estado e nosso país o que nos faz seus herdeiros. Ele uniu pessoas e transportou o progresso em milhares de quilômetros de linha férrea em grande parte do Brasil. A criação do DNOCS até hoje beneficia a Área do Polígono da Seca levando soluções à população que sofre as conseqüências da seca. E o município de Francisco Sá é beneficiário deste Departamento. O Cristo Redentor ficou mais iluminado; a agricultura de Minas Gerais ganhou novo alento. Francisco Sá foi um homem à frente de seu tempo; suas idéias e ações contribuíram para o progresso e o crescimento do Brasil.

Creio que a partir do momento em que todo franciscosaense tomar conhecimento do que foi a vida do nosso conterrâneo Francisco Sá, assim como eu, terá mais orgulho de ter nascido aqui. Espero que sua trajetória digna, honrada, laboriosa e patriótica seja exemplo para todos nós que amamos esta terra querida. Para que isso aconteça faz-se necessário que sua biografia seja conhecida. E esta será a partir de agora uma
causa e uma bandeira que irei abraçar com garra e imensa honra.

Francisco Sá faleceu no dia 23 de abril de 1936.


DOCUMENTO HISTÓRICO


Documento assinado por Francisco Sá


O VELHO INSTITUTO

Maria Luiza Silveira Teles
Cadeira N. 42
Patrono: Geraldo Tito da Silveira

Recebo um e-mail de um grande amigo montes-clarense, residente lá pela Bahia, há bem uns trinta anos. Disse estar acompanhando, com gosto, as minhas crônicas e pede-me para falar mais dos tempos de nossa juventude.

Depois deste e-mail, uma saudade impiedosa e insistente ficou a arrombar-me os íntimos do ser. Lembranças, cuidadosamente guardadas, naquela gaveta que a gente não gosta muito de mexer, insistem em pular para fora...

E, aí, me vejo tão garota já com a grande responsabilidade de dar aulas para pessoas mais velhas do que eu. Explico: aqui cheguei com os meus 16 anos, mas falando inglês muito bem, depois de já ter cursado o Lower Cambridge, em Belo Horizonte. Então, minha prima, Ruth Tolentino, educadora por natureza, trata de contar o feito para Dr. João Luiz de Almeida, nome de respeito e de lembrança saudosa nos anais da História de Montes Claros. Ele, muito sisudo, mas um grande educador e um enorme coração, me chama para assumir um bocado de aulas lá no Instituto Norte Mineiro de Educação.

Mas, era difícil acreditar que uma adolescente já falasse inglês com tanta fluência e, ainda por cima, soubesse dar aulas e controlar turmas de marmanjos. Ele nunca imaginou que eu soubesse, mas bem que eu o via, escondido pela porta, acompanhando minhas aulas. Afinal de contas, seu educandário era uma instituição de respeito e não podia aceitar qualquer professor!

Depois de um mês, mais ou menos, ele se sentiu seguro: não é que a menina entendia mesmo do riscado?! Aí, como um bom pai, deixou de vigiar-me e soltou-me pelas salas do Instituto.

Foi um tempo maravilhoso de minha vida. Lá fiz um montão de amigos, muitos dos quais ainda conservo, e outros que o Senhor resolveu levar para as bandas de cima, como Toninho Ramos. Eram esses amigos que me chamavam para festas, horas dançantes dos clubes volantes e lá na boate da Praça de Esportes, no domingo de manhã.

Foi lá, com meus alunos-amigos, que resolvemos criar o Night Club, que fez história entre a juventude daquele tempo. Isso sem falar nas festas que já tínhamos, lá mesmo no Instituto. Quem da minha geração não se lembra das famosas festas juninas do Instituto? Não havia quem nos superasse! E os grêmios? Verdadeiras apoteoses, revelando cantores, atores, poetas, artistas de toda forma. Todo mundo levava a coisa a sério e se esmerava para apresentar-se no Grêmio, verdadeiro cadinho de talentos. Dia de Grêmio era dia de alegria! Não era como depois, em outras escolas, onde eu ouvia os comentários:" Ah, grêmio, que chatice!...”

Dr. João não apenas dava suas aulas com muita maestria, mas exigia que todos fossem bons, disciplinados e não admitia ninguém "cabular" aulas. Dirigia a sua escola com mão de ferro e coração de pai.

Tínhamos, também, nossos piqueniques, acho que lá pras bandas do Carrapato. Era uma alegria só! Eu era umaprofessora muito segura, apesar dos verdes anos! Mas sempre me encantou a disciplina impecável dos alunos! Um dia, porém, muitos anos depois, fiquei sabendo da tal disciplina: não era que os danados ficavam quietinhos olhando minhas pernas, por baixo da mesa?!

Depois que as aulas acabavam, lá pelas onze da noite, nós íamos em bando, voltando para nossas casas, contentes da vida, sem nenhuma preocupação com segurança, pois Montes Claros era como um grande família. Quando me lembro, pareceme que éramos um bando de periquitos, fazendo um barulhão danado! Este meu amigo, que provocou estas lembranças, era um vizinho de confiança, que me levava, direitinho, para casa.

Lá, naquela extraordinária instituição, formaram-se pessoas hoje famosas por sua intelectualidade. Lá, muitos namoros começaram e muitos casamentos se fizeram. Tantos rostos me vêm à memória neste mergulho no passado. Lembrome, por exemplo, de Rilson, o fotógrafo, sempre presente em todas as nossas festas. Hoje, ele deve andar fotografando galáxias distantes! Mas, que saudade!

Viu, amigo João, o que provocou? Neste instante não sou mais uma senhora, entrada nos anos, mas apenas uma jovenzinha mergulhada em sonhos, esperanças, projetos, muitos dos quais murcharam e morreram pela estrada da Vida. Mas, que valeu, valeu!


ROMANCE DAS IDÉIAS

Miriam Carvalho
Cadeira N. 88
Patrono: Plínio Ribeiro dos Santos

Nesta exposição, procuro trazer algumas idéias básicas sobre a construção do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, examinando o texto como lugar onde o sujeito se inscreve e se escreve.

Cada um de nós constrói o seu próprio texto, que é representado por vozes conscientes ou inconscientes, recentes ou antigas, escritas naturalmente produzidas por várias leituras, vivências, mitos familiares, vozes que se confundem umas com as outras, vozes de avó, mães, filhos, inseridas no espaço familiar e re-produzidas no espaço social.

Num sentido amplo, o Romanceiro trabalha com o texto copiado, invertido, pontuado aqui, sublinhado ali, escrevendo, por sua vez, um texto flutuante, preenchendo lacunas, vazios, viajando por outros textos e através deles, o espaço da ficção constrói-se de forma extremamente complexa.

Encarando a escrita do Romanceiro sob esse prisma, percebe-se uma capitalíssima característica: ele é corpo feito de outros tecidos/ textos.

As informações contidas no seu espaço não são semelhantes às informações transmitidas no discurso usual da história da Inconfidência Mineira. Mas os sujeitos falantes, os monólogos, as falas, os relatos, os dados brancos e negros na concepção da autora não foram colhidos dos Autos da Devassa?

Não fazem parte do material histórico? Onde está o texto literário? Onde, a relação ambivalente, dúbia com o real, criando efeitos de verossimilhança ou fantasmagoria? No questionamento do texto, o espaço ficcional é representação e nele também se encena a linguagem, isto é, a linguagem se teatraliza, e, neste sentido, é possível restaurar a realidade histórico-social: "intrigas de ouro e sonho", segundo a autora, é possível restaurar o lado dramático da Conjuração Mineira, as falas distintas da África - terra do exílio dos Inconfidentes - o tom reflexivo e dubitativo das personagens.

Temos, pois, de admitir no Romanceiro dimensões que superam uma problemática história, mesmo porque o texto ganha infinitas significações. Para entendê-las, é preciso discernir o que se oculta detrás das palavras, como o Romance das Palavras Aéreas; é preciso descobrir a liberdade, vista como pedra grada; ir das palavras às coisas e contornar este terreno congestionado de dados brancos - "o ouro, a ciência, a arte, a liberdade, o amor", e os dados negros: "a ambição, a inveja, a impostura, a tirania, a covardia, a traição".

É possível situar nesses dados a voz da História que será ouvida através da poesia. Ela nos dará a exata medida de uma convicção artística, dizendo-se e desdizendo-se como ficção. Esse real da ficção é diverso do outro real histórico, mas com ele dialoga. Através dele, somos conduzidos por uma atmosfera de lembranças e mistérios com a predominância de um discurso apoiado na reflexão que, por sua vez, se sobrepõe à ação.

São cinco partes bem definidas no Romanceiro: o ambiente - os 4 cenários - a trama, a frustração, a morte de Cláudia Manuel da Costa e Tiradentes, o infortúnio de Gonzaga e Alvarenga e finalmente, a presença no Brasil, da rainha, D. Maria I.

Na primeira parte do romance, os motivos folclóricos e tradicionais, os nomes ligados à matéria folclórica, os nomes ligados diretamente ao ciclo do ouro e do diamante - Chica da Silva, Chico Rei, contratador Fernandes, Visconde de Barbacena, etc. entram nas estruturas do texto, recebendo uma série de traços que os assimilam aos modelos artísticos.

Por exemplo, o Romance VIII ou
do Chico Rei
Tigre está rugindo
Nas praias do mar.
Vamos cravar a terra, povo,
Entrar pelas águas:
O Rei pede mais ouro, sempre,
Para Portugal
(...)
Mais ouro, mais ouro,
Ainda vêm buscar.
Dobra a cabeça, e espera, povo,
Que este cativeiro
Já nos escorrega dos ombros,
Já não pesa mais!
Vamos cavar a terra, povo.

A palavra povo, na acepção política do termo, pressupõe uma grande comunidade de vizinhos com a experiência política das eleições. Ora, nas Minas Gerais, na época dos inconfidentes havia um povo espalhado por um continente de comunidades florescentes e ricas, com a consciência de que o governo precisava de seu ouro. E havia também um movimento patriótico que se destinava libertar a colônia do jugo português.

Na montagem do sistema artístico a palavra Povo constrói-se exatamente em torno dessas idéias com repetição tautológica, quebrando as alusões referenciais, uma vez que o código histórico reflete-se na arte enquanto polissêmico. Introduzida em rima, a palavra "povo", ao ser repetida, tornou-se melodiosa e declamatória, graças a sua posição final. Além disso, girando em torno das idéias, ouro, cativeiro, Portugal, ela reflete a condição social da asfixia política nas Minas Gerais.

Assim sendo, este segmento abre-se com a descoberta do ouro, seguindo-se o trabalho servil, além de pôr em destaque o espírito aventureiro e evocar certos episódios, como o da Donzela Assassinada pelo pai, a destruição de Ouro Podre, a troca dos quintos, o clima de violência em que fermentarão as idéias libertárias, a força incontrolável da ambição, transformando o ser em objeto. Nesta parte, ainda, a história do rico contratador de diamantes, João Fernandes, a quem muito perseguiu o Conde de Valadares, e os insólitos desejos da Chica da Silva.

Todos esses eventos anunciam, em expectativa dramática, o amor e o desamor, a desgraça e a ambição, a paixão e a morte, coisas eternas e irredutíveis que explodem nas terras das Minas Gerais.

São dados receptivos à exaltação do subjetivo, não aquele que apenas se limita ao EU, mas aquele que se reporta ao todo, ao universal, em busca do questionamento renovado da problemática do Ser, valorizando o mundo, a vida, a sensação da fugacidade das coisas e o registro do perene. Eis um exemplo:

Romance XVIII ou
Dos Velhos do Tijuco
(Que tudo acaba!
Quem diz que montanha de ouro
Não desaba?)
(Que tudo engana.
Gente, só a morte, mesmo,
É soberana!)
Mas os homens e as mulheres
Vivem neste desvario...
Não há febre como a febre
Que corta o serro do Frio.

De acordo com essa consciência lírica, em que o EU não menospreza o poder da retórica ideológica, a segunda parte do Romanceiro destaca as idéias liberais em voga, (Romance das Idéias) e focaliza as reuniões preparatórias da conjuração, indicando a atividade aliciadora de Tiradentes cuja figura centraliza motivos poéticos, destinados à idealização lírica da personagem.

A figura do Alferes (Joaquim José da Silva Xavier), no registro histórico, segundo perfil traçado por João Camilo de Oliveira Torres, representa um homem bem dotado, embora
irrequieto, sempre formulando projetos salvadores, um homem que gozava, no entanto, de boa reputação, consciente de que os brasileiros eram diferentes dos portugueses, necessitando de um governo próprio.

No processo de criação artística, a imagem de homem irrequieto, de inteligência vivaz, atuante, eloqüente, reflete-se no texto enquanto matéria suporte para a recriação da figura idealista. O Alferes é a imagem metafórica do homem bélico, talpídeo, louco, animoso, herói, por excelência, que assume aos olhos dos que desistiram ou traíram o movimento, a figura de um pobre louco cuja intenção messiânica é ressaltada através da palavra. Se o texto valoriza nitidamente o estrato dos oprimidos contra o opressor, colocando-se ao lado daquele que se revolta contra a cobiça e a ganância dos homens é porque esta escritura, ao procurar o modelo de um mundo conturbado em nível de modelização ideológica, não ignorou a relação entre o discurso poético e o código histórico. A própria autora Cecília Meireles, nos dá esta indicação: "as palavras registradas nos depoimentos do processo, ou na memória tradicional, vinham muitas vezes e inesperadamente já metrificadas". E se o discurso usual prevê o pathos naquele sentido do dicionário, traduzido por vivência, desgraça, sofrimento, paixão;, o discurso poético já não se satisfaz com essa significação literal, preferindo suscitar no leitor a dúvida, a ambigüidade de sentido entre o perguntar e o calar, num jogo de fala patética:

"Fala Inicial", "Fala à antiga Vila Rica", "Fala à Comarca do Rio das Mortes", "Fala aos Inconfidentes Mortos".

Falas e romances dialogam com o texto histórico e recolhem os dados da tragédia, sugeridos pelo jogo de cartas, que prevê a morte de Cláudio Manuel da Costa e Tiradentes e, ao mesmo tempo, o exílio de Tomás Antônio Gonzaga, o noivo de Marília. Nesta 3ª parte, seguem-se os romances da agonia e da morte de Tiradentes, gerados na relação com os Autos da Devassa e absorvidos no espaço poético:

Romance LVIII ou
Da grande Madrugada
"Ah, não fecheis vossos olhos,
que hoje é tempo de agonia!
Lembrai-vos deste momento,
Neste sinistro aposento
Onde a morte principia!
Vede o mártir como fita
Sereno a sua desdita,
E o negro Capitania!”

Na construção do texto, a própria Cecília oferece ao leitor a fonte de inspiração do Romanceiro. Numa carta endereçada à escritora Lúcia Machado de Almeida, sua grande amiga, ela comenta. "Leio os autos da Devassa e vejo tudo, sinto, ouço, conheço cada personagem como conheço você. Vejo como se sentam, como Cláudio coloca os óculos e Tiradentes pega o boticão. Sei como são as mãos de Gonzaga, sei que o Padre Rolim tem um jeito especial de olhar de banda e sei que Alvarenga fala de queixo empinado, quase sempre em latim.”

Ao enfatizar o comportamento e o sentimento das personagens, o texto ressalta a condição contraditória do serhumano, destacando sentimentos de oposição, tais como: força/ fragilidade; amor/ ódio; liberdade/ prisão; esperança/ desespero; nobreza/ vilania. E a autora destaca a busca de sentido para as coisas, através da formulação de perguntas:

Romance LIV ou
Da Reflexão dos Justos
(...) "Quem se mata em sonho, esforço,
mistérios, vigílias, pressas?
Quem confia nos amigos
Quem acredita em promessas?
Que tempos medonhos chegam,
Depois de tão dura prova?
Quem vai saber, no futuro,
O que se aprova ou reprova?
De que alma é que vai ser feita essa humanidade?”

Ainda é lícito cogitar que as interrogativas, à medida que se amontoam nos versos, aparecem como pausas evocativas do fluir do tempo e coincidem, por sinal, com um espaço distante.

Fala à Comarca
Do Rio Das Mortes
"onde, o gado que pascia
e onde, os campos e onde, as searas?
(...)
Onde, as donas que subiam
Para a missa, estas escadas?
(...)
Onde, os lábios que sorriam
Onde, os olhos que miravam
As pinturas destes tetos,
Agora quase apagadas?
(...)
Onde estão seus vastos sonhos,
Ó cidade abandonada?
De onde vinham? Para onde iam?
Por onde foi que passaram?”

A palavra onde além de conotar uma realidade distante referente ao espaço, também se aplica à noção de distância no tempo. Às vezes, aparece aliada a um espaço evocador do ambiente em que viveu Gonzaga, como o sugerido na 4ª parte do
Romanceiro.

"No jardim que foi de Gonzaga
a pedra é triste, a flor é débil,
há na luz uma cor amarga.
Ninguém vê nenhum livro a aberto
Ninguém vê mão nenhuma erguida
Com fios de ouro sobre o mundo,
Para um bordado sem destino,
(...)

Novos eventos aparecem nesta 4ª parte, mostrando os passos do infortúnio que sobre o poeta Gonzaga se abateu: a maledicência dos pequeninos, a antevisão da África inóspita, a suposta despedida de Marília. Há, ainda, o romance de Juliana de Mascarenhas, o amor de Gonzaga nas terras africanas. Estes elementos servem, na visão contextual do romanceiro, como ponto referencial de contraste com a Imaginária Serenata da Marília Inconformada. Outros motivos são citados nesta parte: Grandeza e miséria de Alvarenga Peixoto, considerado como um dos principais chefes da conjuração e desterrado para terras africanas, o destino trágico de sua mulher Bárbara Heliodora e a morte da filha Maria lfigênia e, finalmente, remata esta parte a figuração de Joaquina Dorotéia, (Marília) já com oitenta anos, a caminho da Paróquia de Antônio Dias.

"Essa, que sobe vagarosa
a ladeira da sua igreja
embora já não mais o seja,
foi Clara, na carada rosa.
E seu cabelo destrançado,
Ao clarão da amorosa aurora,
Não era esta prata de agora,
Mas negro veludo ondulado.”
(...)

O último quadro do Romanceiro representa um novo plano temporal: curto, incisivo, mostra a D. Maria I, a mesma que vinte anos antes lavraria a sentença de morte e degredo a contemplar com olhos de loucura a terra onde se desenrolou o drama dos padres, poetas, doutores e soldados inconfidentes. Os remorsos que a atormentam culminam com a morte, seguindo-se a lírica exaltação dos cavalos da Inconfidência, encerrando-se o Romanceiro com a solene Fala aos Inconfidentes Mortos.

"Parada noite,
suspensa em bruma:
não, não se avistam
os fundos leitos...
Mas, no horizonte
de que é memória
da eternidade,
referve o embate
de antigas horas,
de antigos fatos,
de homens antigos.”

Esta fala, e as outras falas participam da ação dramática do texto. Conforme afirma um autor russo - Bogatyriou "quem fala, manifesta pelo que diz, seu estado de espírito, mas, simultaneamente, seu discuro" (...)

As falas no Romanceiro não fogem da intenção de dizer o que é a vida, não fogem da intenção de mostrar que criar é estar em inteira atenção às coisas da vida, às idéias que são reproduzidas ao longo dos tempos.

Neste sentido, as falas do Romanceiro não fogem da intenção de refigurar a condição histórica do ser humano para que ele alcance o seu estatuto de consciência histórica.

Para concluir a nossa exposição ainda uma questão se levanta:

Por que esta poética de sugestão teria recaído na palavra romance? São 85 romances que compõem o Romanceiro, mais 5 falas, 4 cenários e ainda, a Imaginária Serenata e o Retrato de Marília em Antônio Dias. A obra traz esta marca inconfundível. Romances cronologicamente numerados e com as marcas específicas de uma determinada informação. No entanto, romance moderno, aculturado ao século XX e segundo a perspectiva de Ramón Menendez Pidal os romances são poemas épicos que cantam ao som de um instrumento, seguidos de fragmentos épicos. São combinados com traços de efetiva emoção, com predominância de elementos que se referem ao diálogo, desaparecendo, às vezes, o relato para ceder lugar à intuição rápida e viva de uma situação dramática. Eis a escolha de Cecília Meireles.

O Romanceiro, portador de fragmentos épico-líricos e com predominância do elemento dramático, melhor jogaria com os elementos dialogísticos, retemperando liricamente os históricos incidentes da Inconfidência Mineira. Além dos romances, as falas re-presentam o clima emocional da tragédia maior, dando animação e aura de presságio a esse extenso cantar épico-lírico. Exercendo uma função quase idêntica ao coro das tragédias gregas, o lado dramático do texto aparece dinamizado e, ao mesmo tempo, provoca a tensão dialética de uma manifestação teatral. Intercaladas nos romances, as falas representam um meio de exprimir a emoção do próprio conteúdo do discurso. Intervindo mais diretamente, elas funcionam como cenário da própria persona poética em sua participação emotiva da trama. Ainda a idéia de ação, movimento, luta, uma tomada de consciência diante de um acontecimento significativo: um povo governado de fora.

Deparamos, pois, com uma circunstância muito original. O Romanceiro aproveita elementos de uma representação teatral e esta, por sua vez, é uma estrutura composta de elementos pertencentes a diferentes artes (poesia, artes plástica, música, coreografia, etc.).

No processo da criação artística, romances, falas, cenários acentuam semelhanças e diferenças de dois espaços, portadores de significação especial: poesia e teatro.

De todas estas reflexões, cumpre ressaltar que a polissemia singular dos dados brancos e negros re-presenta a palavra, ressuscita o valor das palavras aéreas, das idéias, em consonância com a organização rítmica dos romances, dizendo o indizível. Fazendo da linguagem da história a matéria poética de sua tradução.

Os dados da animosidade, da projetada sublevação, tornam-se eco inquietante de uma consciência indagadora do ser humano através da voz palpitante de sugestão:

(Palpita a noite, repleta
de fantasmas, de presságios...)
E as idéias...


MONTAGEM DE FRAGMENTOS BIOGRÁFICOS E POÉTICOS DA AUTORA CECÍLIA MEIRELES

O tempo gerou meu sonho
Sete de novembro de 1901.
As ordens da madrugada
Ampliam por sobre os montes.
Nasci no Rio de Janeiro
A minha vida se resume como
Normalista, em 1917.
Fui professora primária
Sem levar dessa trajetória
Nem esse prêmio de perfume
Que as flores concedem ao vento...
Eu fui a de mãos ardentes
Cansada, três filhos, dois netos
E feliz de ser nascida,
Fui subindo altas vertentes
Para a vida.
Não fumei, não bebi, não joguei,
Gostava de música que soava
Flor em pedra debruçada
Canções medievais, espanholas,
Orientais...
Eu vim de infinitos caminhos
Escutando o galope certeiro dos dias
Soltando as roxas barreiras da aurora.
Preferi os bons poetas
E amei os pintores flamengos
Pois a arte de amar
É exatamente a de ser poeta.
Visitei o oriente
Andei pelo mundo no meio dos homens
Bem sei que, olhando pra minha cara,
Pra minha boca triste e incoerente,
Nos gestos vagos de sombra incerta
Que hoje sou eu,
Minha loucura se faz tão clara!
O meu principal defeito?
Uma certa ausência do mundo
Por isso em meu corpo vã
Brotando, em morno canteiro
Incenso, mirra e canção.
Tive grande emoção
Em Açores, terra dos meus antepassados.
Hoje é tarde para os desejos.
Durmo com a noite nos meus braços,
Mas o vento voa
A noite toda se atordoa,
A folha cai
E amo:
Criança - raio de lua.
Luar
Lua do ar.
Azul
Objetos antigos, flores,
Música de cravo,
Praia deserta,
Livros, livros, noite
Com estrelas e amigos.
9 de novembro de 1964
morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto
no muro de saudade!
Eu lhe dizia: Deixa a morte levar teu amor!
Nunca!
Nunca eu tivera, querido,
Dizer palavra tão louca:
bateu-me o vento na boca
E depois no teu ouvido.
Em que espelho ficou perdida
A minha face?
O tempo versátil foge por esquinas
De vidro, de seda, de abraços difusos
Estou vendo...
Viagem, vaga música
Mar absoluto, estudos
Homenagem, reportagens
A lua que chega traz outros convites:
Inclina/ em meus olhos o celeste mapa,
Romanceiro de Inconfidência
Agora, abraço-me à noite nítida
À alta, à vasta noite estrangeira.
Eu mesma não vejo quem sou, na alta noite,
Nem creio que seja: perduro em memória.
À mercê dos ventos, das brumas nascidas
(tão fora do tempo, do reino dos homens)
desenrolei do tempo a minha canção.

(Diálogo estabelecido com a obra da autora Cecília Meireles)


JOSÉ GOMES DE OLIVEIRA: UM LÍDER, UM LUTADOR

Palmyra Santos Oliveira
Cadeira N. 64
Patrono: José Gomes de Oliveira

O meu patrono no Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros é meu irmão e foi um quase pai, orientando-me com carinho, firmeza e retidão de caráter, desde quando
perdemos nosso saudoso genitor, vitimado por traiçoeiro e fulminante ataque cardíaco, em terras paulistas, nos idos de 1929.

Filho primogênito de Manoel Gomes de Oliveira e de Laura Pereira dos Santos, JoséGomes de Oliveira nasceu no dia 7 de abril de 1916, em Montes Claros - MG.

Fez o curso primário no Grupo Escolar Gonçalves Chaves e o propedêutico no Instituto Norte-Mineiro de Educação, em sua cidade natal.

Aos 13 anos, ficou órfão de pai e, como filho mais velho, teve de trabalhar para auxiliar sua mãe a criar os cinco irmãos. Trabalhou no comércio “Vale quem tem – quem não tem não vale nada”, do português Nuno Pereira – dono da “Maria Bambá”, uma boneca enorme, carregada por uma pessoa que, através de um megafone, anunciava os reclames publicitários – de 1931 a 1933.

Aprendeu o ofício de alfaiate, com o Sr. Cecílio de Souza Barbosa, mas, logo a seguir, foi funcionário da Prefeitura Municipal e, por meio de José Dias Macedo (Juca Carteiro),
ingressou nos Correios e Telégrafos, como servente.

Prestou serviço militar no 10º. Regimento de Infantaria, sediado em Belo Horizonte, como soldado sinaleiro observador, de 1935 a 1936.

Foi porta-bandeira e monitor da Patrulha do Cavalo, da Associação de Escoteiros Antônio Gonçalves Figueira, em Montes Claros, de 1936 a 1940.

Em 20 de outubro de 1940, tomou posse no cargo de Agente Postal Telegráfico, em Porteirinha, em cujo cargo permaneceu até outubro de 1943, quando foi transferido para Montes Claros. Exerceu o mesmo cargo em Rio Pardo de Minas, Monte Azul e Espinosa.

Fez diversos cursos profissionalizantes, entre os quais o de treinamento dos agentes da reforma administrativa, o de supervisão empresarial e o de inspetor dos Correios e Telégrafos, ocupando este cargo por 18 anos, até a sua aposentadoria.

Praticou quase todos os esportes de seu tempo, fundando vários times, não só em Porteirinha como também em Montes Claros, onde foi membro fundador da Associação Desportiva Ateneu, do qual foi campeão de voleibol e de basquete.

Foi superintendente do Montes Claros Tênis Clube por longo período. Em suas tividades sociais, foi membro fundador, secretário, diretor e presidente do Rotary Club Montes Claros Norte.

Foi fundador e primeiro presidente da APAE em Montes Claros, tendo elaborado seu estatuto e providenciado sua legalização junto aos órgãos competentes. Como reconhecimento ao trabalho que ali desenvolveu, deram ao anfiteatro da instituição o seu nome.

Quando trabalhava em Porteirinha, ao falar ao telefone com sua colega Jandinha, de Riacho dos Machados, ouviu uma sonora risada que o sensibilizou de alguma forma. Ao perguntar de quem era a tal risada, Jandinha respondeu ser de uma sua amiga. Então ele pediu para falar com a pessoa e se apaixonou pela voz de Dorzinha. Na ocasião, ele era noivo da filha do Juiz de Paz de Porteirinha, mas aquela voz havia mexido com seu coração de tal forma que, logo a seguir, desfez o noivado e foi a Riacho dos Machados conhecer aquela pessoa dona da maravilhosa voz pela qual se apaixonara. Ficou noivo e, no mês de junho de 1942, contraiu matrimônio com Maria das Dores Guimarães Gomes, tendo os seguintes filhos: Propércio Gomes Baleeiro (médico), José Carlos Gomes (advogado e funcionário aposentado do Banco do Brasil), José Geraldo Gomes (engenheiro mecânico e agro-pecuarista), Eustáquio Wagner Guimarães Gomes (administrador e funcionário aposentado do Banco do Brasil), Eduardo Gomes (médico veterinário e professor da Universidade Federal de Minas Gerais) e Maria Rosália Guimarães Gomes Silva (administradora).

José Gomes de Oliveira foi iniciado na maçonaria, na Loja Deus e Liberdade de Montes Claros, em 15 de outubro de 1946. Foi elevado a companheiro, em 24 de fevereiro de 1947, e exaltado mestre em 18 de junho de 1947.

Foi cavaleiro Rosa Cruz, em 4 de maio de 1949 e elevado ao Grau 33, em 4 de maio de 1973.

Foi tesoureiro, secretário e orador da Loja por diversas vezes e seu Venerável por vários períodos.

Foi delegado do Grande Oriente de Minas Gerais para a décima quarta Região, com sede em Montes Claros – MG.

Foi membro fundador do Supremo Conselho do grau 33 para a República Federativa do Brasil, em Belo Horizonte.

Foi agraciado com inúmeros títulos honoríficos e condecorações maçônicas em Minas Gerais.

Foi um dos primeiros a receber o título de Cidadão Benemérito de Montes Claros, concedido pela Câmara Municipal, conforme Resolução no. 228, de 1º. de setembro de
1976.

Restaurou algumas lojas maçônicas já existentes e fundou outras no Norte de Minas.

Concluiu a construção do Palácio Maçônico da Loja Deus e Liberdade, em Montes Claros, em setembro de 1977. Essa Loja o homenageou, dando ao Salão de Festas o seu nome.

Finalmente, como sua irmã de sangue e testemunha de toda a sua existência de lutas e desafios, de que nunca se curvou, faço minhas as palavras do grande poeta e dramaturgo alemão Bertold Brecht, que retratam, com fidelidade, a vida do meu Patrono neste Instituto Histórico e Geográfico:

“Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis.”

José Gomes de Oliveira faleceu aos 77 anos, em 11 de julho de 1993, em Montes Claros, em conseqüência de problemas respiratórios agudos.


NUMISMÁTICA MONTES-CLARENSE


Nota de 500 RS. da Fábrica de Tecidos “Companhia Montes Claros”


Nota de 2000 RS. da Fábrica de Tecidos “Companhia Montes Claros”


As cédulas impressas neste livro foram cedidas gentilmente por Terezinha
Gomes Pires ao numismata Dário Teixeira Cotrim.


A CONJURAÇÃO DO SÃO FRANCISCO

Petrônio Braz
Cadeira N. 18
Patrono: Brasiliano Braz

A ainda desconhecida Conjuração do São Francisco foi o primeiro movimento sedicioso ocorrido no Brasil contra a dominação portuguesa. Abafada pela Colônia, não foirevivida pelo Império, após a Independência e nem pela Republica. Pouco se divulgou sobre ela, quase nada se sabendo sobre a pessoa de Maria da Cruz, de ilustre família da casa da Torre, esposa de Salvador Cardoso de Oliveira, senhora do povoado de Pedras de Baixo, hoje município de Maria da Cruz, desmembrado de Januária/MG, nas margens do rio São Francisco.

No ano de 1736, registram Diogo de Vasconcelos e Brasiliano Braz, após o desaparecimento do Cel. Januário Cardoso, chefe da poderosa família Cardoso, o Vale mineiro do Médio São Francisco foi dividido entre seus familiares, cabendo a Maria da Cruz o povoado de Pedras de Baixo. Seu filho Pedro Cardoso movimentava um grande comércio, pelo São Francisco, entre a Bahia e o Distrito de Ouro em Minas Gerais. Toda a região era um centro de produção de gado, que abastecia o Distrito de Ouro, encravado nas entranhas das montanhas mineiras.

Revoltados contra os pesados tributos, bem antes da Inconfidência Mineira, os barranqueiros do São Francisco saíram da conspiração silenciosa para a ação militar. Com forte contingente de homens armados, Maria da Cruz, Domingos do Pardo e Oliveira, Pedro Cardoso, André Gonçalves de Figueira e outros chefes subiram o Rio em barcas, para o confronto armado com as forças da coroa portuguesa, em busca da liberdade.

Relata Diogo de Vasconcelos que na Semana Santa de 1736, em abril, a família Cardoso reuniu-se em Morrinhos, onde foi idealizado o plano de invasão de Vila Rica, então capital da Capitania, para expulsar o governador Martinho de Mendonça.

Não tiveram, contudo, um pulso forte, um líder com poder para unir os diversos grupos. Pretendiam subir o Rio das Velhas, que era navegável, até Sabará. Cada um dos sediciosos comandava seu povo, de forma desordenada, razão porque não passaram da Barra do Guaicuí (hoje município de Várzea da Palma).

De ser lembrado, por necessário, que eles foram muito além dos inconfidentes. Saíram da conspiração silenciosa para a ação militar. Entre os conspiradores não havia, no entanto, nobres, nem cultores das letras, que se destacassem, que marcassem presença para as vistas da história.

Quando se fala, hoje em revitalização do rio São Francisco - o Rio de todas as águas - cujos afluentes têm sido vítimas do processo de destruição de suas nascentes e de suas matas ciliares; quando se reconhece o assoreamento do seu leito, que impediu a continuidade da navegação fluvial, a sua história deve ser lembrada como um marco do passado a exigir o reconhecimento do presente.

A Conjuração do São Francisco está a merecer mais aprofundados estudos, constituindo-se em um desafio aos cultores da história.

A conjurada Maria da Cruz Portocarreiro ou Maria da Cruz Torre Prado de Almeida Oliveira Matias Toledo Cardoso, descendente dos Ávilas da Casa da Torre, educada em colégio de freiras em Salvador-BA, viúva de Salvador Cardoso de Oliveira, está a exigir um estudo aprofundado de sua vida e de sua ação colonizadora.

A poesia de José Gonçalves de Souza marca sua vida; Augusta Figueiredo, em “Maria da Cruz e o Velho Chico”, fixa passagem de sua profícua existência, mas pouco, muito pouco, sobre ela se escreveu até agora. Diogo de Vasconcelos, em sua “Historia Média de Minas Gerais”, é quem melhor informa sobre sua vida, esclarecendo que “em seus domínios ela possuía teares de algodão, curtumes e oficinas de couros, tenda de ferreiros e carapinas, escolas de leitura e de música, além de armazéns de fazenda”. A ela dedicou Antônio Emílio Pereira pouco mais de uma página em seu livro “Memorial Januária – Terra, Rios e Gente”.

Afirmou Alexandre Herculano que o “mister de recordar o passado é uma espécie de magistratura moral, é uma espécie de sacerdócio. Exercitem-no os que podem e sabem, porque não o fazer é um crime”. Há, todavia, pessoas que afirmam que recordar o passado é um saudosismo “demodé”.

Dediquei-me, por um longo período de mais de vinte anos, a pesquisar sobre a vida de Antônio Dó. Não tenho mais idade, nem me sobra tempo para investigar sobre a Conjuração do São Francisco, sobre a vida e a obra de Maria da Cruz, extraordinária mulher que dominou, durante muito tempo, toda a região do Alto Médio São Francisco, em Minas Gerais, numa época em que os homens tinham o domínio das decisões.

Não poucas mulheres se destacaram no contexto histórico universal, no campo das artes, das ciências e até mesmo das guerras. Infelizmente, a televisão nos mostrou Xica (Chica) da Silva, uma prostituta qualificada, como classificada no mesmo sentido foi Cleópatra, que é destacada como personagem de primeira grandeza no Museu do Sexo de Amsterdã, na Holanda, que visitei.

A história destaca, entre tantas outras mulheres extraordinárias, Joaquina de Pompéu, Emilia Snethlage, desbravadora da floreta amazônica, nos primórdios do Século XX, Josephina Álvares de Azevedo, defensora do voto feminino, mas não se lembrou, ainda, de colocar no pedestal que merece a pioneira Maria da Cruz. A sua fazenda, nas margens do rio São Francisco, transformou-se em povoado e o povoado em cidade que lembra o seu nome, apenas isto. Nem mesmo o povo de Pedras de Maria da Cruz sabe dizer de sua história.

Morei alguns anos em João Pinheiro, todavia, muitos ali residentes não sabiam, nem sabem, quem foi João Pinheiro, a pessoa que deu nome à cidade. Quando se fala hoje, em Governador Valadares todos se lembram da cidade, mas ninguém, ou quase ninguém, sabe que o nome da cidade é uma homenagem ao Governador Benedito Valadares. Pedras de Maria da Cruz não foge a essa realidade. Para muitos é apenas um nome, como tantos outros, mas um nome que imortaliza a extraordinária precursora, que, servindo-me das palavras de Euclides da Cunha, ”suportou as agruras daquele rincão”.

Os positivistas, como lembra Vanessa M. Brasília, ilustre professora do Departamento de História da Universidade de Brasília, subestimam o rio São Francisco, declarando ser ele um rio sem história, porque não tem documentos que a comprovem.

Até quando?


TRADIÇÃO E CULTURA

Petrônio Braz
Cadeira N. 18
Patrono: Brasiliano Braz


Não tivessem as tradições vinculadas à cultura de qualquer povo, primitivo ou civilizado, sido preservadas, não teriam chegado aos nossos tempos os valores da Grécia clássica e, na Europa, os edifícios e as obras de arte medievais teriam desaparecido.

Aqui pelos nortes das gerais pouco se cuida da preservação do nosso passado histórico. Nem mesmo em Montes Claros, cidade universitária, os valores culturais edificados têm sido resguardados.

Uma advogada, em São Francisco, criticou, através de escritos em um jornal, o fato de um outro advogado estar mantendo seu escritório em uma construção antiga, por ele preservada, enquanto um vizinho havia demolido parte da mesma construção para nova edificação. Também ali, na minha terra encravada na margem direita do rio São Francisco, um político afirmou que relembrar o passado é saudosismo ultrapassado.

Se assim fosse, para que estudar história? O passado deveria morrer. Ser esquecido. Nem mesmo de nossos pais, filhos ou avós, que se foram, deveríamos nos lembrar. É passado. No entanto, nem os bárbaros esqueciam os seus mortos. Eles - os bárbaros - não deixavam sair da memória das gerações as suas tradições.

O que somos está vinculado ao que éramos. Faz parte do processo evolutivo da humanidade. Até hoje não me conformo, por exemplo, com a demolição do Mercado Central, da Praça Dr. Carlos. A Administração municipal poderia ter retirado dele os comerciantes, como Cristo expulsou os vendilhões do Tempo, transformando o local em um Centro Cultural ou em um Museu do Tropeiro. Os vendilhões foram expulsos, mas as ruínas do Templo ainda se fazem presentes no contexto urbano de Jerusalém.

Falando em tradição, percorri parte da Estrada Real, na região do Parque Nacional da Serra do Cipó. Em Ipoema, distrito de Itabira, que se localiza no curso da mesma Estrada, presenciei as comemorações do 5º Aniversário da instalação do Museu do Tropeiro. Ali, no Centro de Minas Gerais, as tradições são resguardadas e o povo se orgulha delas. Vive-se o passado com os pés no presente. O progresso não apagou da memória as andanças a cavalo, a vida rural em sua inteireza plena. As ruas e a própria estrada (ainda de terra) com incontáveis cavaleiros, orgulhosos de serem ruralistas. Na lembrança revivi os meus próprios tempos de vaqueiro, quando na mocidade auxiliava, nas férias escolares, os trabalhos de campo na fazenda de meu pai, em São Francisco. Por que, em Montes Claros, ainda não se lembraram de fixar o passado de nossos vaqueiros, dos tropeiros? Verdade que as vaquejadas retêm em nossa memória parte desse
passado. Mas não é tudo que se espera, para essa preservação.

Na realidade presente os caminhões substituíram os vaqueiros no árduo e edificante trabalho de conduzir boiadas. O berrante do vaqueiro foi substituído pela buzina do caminhão. Quem leu Euclides da Cunha viu o vaqueiro nordestino, em sua essência física.

Como era eletrizante o topar de um boi na aguilhoada de um vaqueiro! Nunca me animei a tanto. Como era dramático o estouro de uma boiada! Presenciei a um, e pretendo descrevê-lo um dia.

A modernidade não deve e não pode apagar as tradições do passado. O Departamento de História da UNIMONTES tem sobre os seus ombros a grande responsabilidade da manutenção da lembrança e da preservação de nossas tradições culturais, que devem ser tratadas com especial carinho. Preservar a cultura é um dever universitário.


O LENDÁRIO ANÍSIO SANTIAGO

Roberto Carlos Morais Santiago
Cadeira N. 44
Patrono: Heloísa Veloso Anjos Sarmento

“A história de Anísio Santiago confunde-se com a de Salinas, cidade onde
são produzidas as mais cobiçadas cachaças artesanais do Brasil, e das quais
a Havana sempre foi o símbolo mais cintilante.
O alquimista que criou a fórmula de transformar pinga em ouro era um
homem perfeccionista e obsessivo, e concebeu modelo de alambicagem e
envelhecimento da bebida até hoje não decifrado pela concorrência.”
Ronaldo Ribeiro
(Revista National Geographic do Brasil, outubro de 2003)

A família Santiago surgiu no município norte-mineiro de Salinas no ano de 1898, século XIX, através do pioneiro José Santiago (1877-1944), filho de Justino Santiago e Anna Maria de Jesus, que nasceu na cidade mineira de Diamantina, no Alto Jequitinhonha.

Ainda jovem, em 1894, José Santiago foi estudar medicina em Salvador. Por razões desconhecidas desistiu do curso no segundo ano. Segundo Arlindo Santiago (1910), filho de José Santiago, o motivo da desistência foi a Guerra de Canudos (1896-1897), ocorrida no interior da Bahia, que mobilizou milhares de soldados do governo federal da Nova República para combater o temido Antônio Conselheiro. Em dois anos de conflito milhares de pessoas morreram.

Retornando para Minas Gerais, José Santiago foi morar e trabalhar como professor na cidade de Medina, no Vale do Jequitinhonha. Ali conheceu a baiana Virginia Celestina (1882-1965), natural de Urandi, com quem se casou em 1896.

Em 1898, mudou-se com a esposa para Salinas, exercendo ainda a profissão de professor como fazia em Medina. Dois anos depois foi lecionar no povoado de Lagoinha, interior do município. O povoado, naquela época, tinha importância estratégica, tendo em vista que era parada obrigatória de pessoas e transportadores de mercadorias em mulas entre Salinas e Montes Claros. Em 1903 adquiriu a fazenda Bonfim, próxima ao povoado, onde fixou moradia, tornando-se produtor rural, além de professor. José Santiago tornou-se pessoa muito assediada na região pelo fato de ter conhecimento de medicina, além de ser professor. Em pouco tempo tornou-se uma espécie de líder do povoado de Lagoinha e região.

Da união de José Santiago e Virginia Celestina surgiu prole numerosa, fato muito comum na estrutura familiar do início do século XX. Foram doze filhos: Antônio Santiago (1897-1950), Maria Santiago (1899-1953), Leôncio Santiago (1901-1945), Silvio Santiago (1912-1986), Santinha Santiago (1908-2001), Arlindo Santiago (1910), Anísio Santiago (1912-2002), José Elzito Santiago (1915-1945), Anita Santiago (1913), Osvaldina Santiago (1917) e Osvaldir Santiago (1919-2007). Dos doze filhos, somente o primogênito, Antônio Santiago, nasceu em Medina; os demais em Salinas.

José Santiago veio a falecer em 1944, aos sessenta e sete anos e a sua esposa, Virginia Celestina, em 1965, aos oitenta e três anos. Foram precursores da família Santiago em Salinas, cujo tronco da árvore genealógica tem origem na região de Diamantina.

Da prole numerosa de José Santiago o destino reservou ao sétimo filho trajetória de vida que o tornaria parte da história de Salinas: Anísio Santiago. Nasceu no dia 2 de fevereiro de 1912, na fazenda Bonfim, zona rural de Salinas. Ali cresceu e viveu sua infância e adolescência ao lado dos pais e irmãos.

Aos doze anos de idade, escondido do pai, experimentou beber cachaça pela primeira vez. Não gostou. Desde então jamais bebeu cachaça em toda a sua vida. Entretanto, quis o destino que a cachaça tivesse importância fundamental em sua vida.

O jovem Anísio Santiago aprendeu vários ofícios. Foi carpinteiro, tropeiro, comerciante, motorista e fazendeiro. Como tropeiro, transportou mercadorias em mulas entre Salinas e Montes Claros na década de 1930.

De tropeiro tornou-se motorista de um Ford F-8, que adquiriu no final da década de 1930. Foi um dos primeiros motoristas da região de Salinas e foi testemunha ocular da
modernidade que aos poucos chegava através das estradas empoeiradas e esburacadas.

Em 1937, aos 25 anos, Anísio Santiago casou-se com Adélia Mendes (1916-2007), então com 21 anos de idade. Deixou o povoado de Lagoinha e fixou residência na cidade de Salinas, onde continuou a exercer as atividades de comerciante e motorista.

Alguns anos depois, em 1942, comprou a fazenda Havana de um parente no sopé da Serra dos Bois, distante dezoito quilômetros da sede do município. Para lá mudou com a esposa. Iniciava nova fase na vida do então jovem Anísio Santiago.

Estabelecido definitivamente na fazenda Havana, um ano depois, começou produzir cachaça no pequeno alambique que existia na fazenda do antigo proprietário. Em pouco tempo a produção de cachaça se tornou a principal atividade econômica da propriedade rural. A cachaça produzida era vendida a granel.

Em 1946 constituiu empresa e passou a identificar o seu produto através da marca Havana. A marca foi pioneira na região de Salinas. O produtor Anísio Santiago foi o primeiro produtor de cachaça a identificar a bebida por meio de uma marca, dando origem e personalidade ao produto. Até então os produtores do município e região produziam e vendiam cachaça a granel a comerciantes e tropeiros da região.

Em 1947, adquiriu o caminhão Chevolet Leadmaster, 1947, no Rio de Janeiro, importado dos Estados Unidos. Ele próprio foi à capital federal buscar o caminhão. Com ele passou a comercializar a sua cachaça em Salinas, região norte-mineira e sul da Bahia. Como produzia cachaça de qualidade, logo foi adquirindo fama junto ao consumidor.

Anísio Santiago teve dois fatores decisivos na divulgação do seu produto: a marca Havana (pioneira na região de Salinas) e o caminhão que transportava a bebida diretamente ao consumidor. Com isso saiu na frente dos produtores que comercializavamos o seu produto a granel. Na década de 1960, vários produtores de Salinas começaram a identificar o seu produto por meio de marcas, de olho no sucesso da cachaça de Anísio Santiago. Viam nele uma referência no processo de produção de cachaça de qualidade, uma vez que a marca Havana tinha grande aceitação na região e a sua fama estava ultrapassando fronteiras. Em função disso logo surgiram várias marcas como a Piragibana, do produtor Ney Corrêa; a Indaiazinha, do produtor Waldete Romualdo; a Seleta, do produtor Miguelzinho de Almeida; a Teixeirinha, do produtor Felismino Teixeira; a Asa Branca, do produtor Juventino Queiroz; a Sabiá, do produtor Juca Marcolino; a Estrela do Norte, do produtor Purdencio Francisco dos Santos; e a Puluzinha, do produtor Narciso Dias Corrêia.

Outro fator determinante para o surgimento de novas marcas em Salinas foi a decadência da cadeia produtiva de cachaça na região de Januária, na década de 1960, século XX, em função da ação gananciosa dos produtores, que não souberam manter a qualidade e tradição da cachaça ali produzida. Até então as marcas de Januária gozavam de alto conceito junto ao consumidor, na região norte-mineira e em todo o Brasil.

Com isso, Salinas foi aos poucos preenchendo lacuna no mercado de cachaça deixado pelos produtores de Januária. Na década de 1970, Salinas foi se impondo regionalmente como grande produtora de cachaça. O clima, solo e a variedade de cana Java, que se adaptou muito bem ao clima da região, foram fatores decisivos em todo o processo. Outro aspecto interessante no crescimento do setor produtivo de cachaça é a marca Havana, na época já reconhecida como marca tradicional, que se tornou um ícone dos produtores da região.

Na década de 1990, a cachaça de Salinas passou por novo e vigoroso processo de expansão da produção, culminando no aumento significativo de marcas em função da implantação do Pró-Cachaça, pelo governo mineiro, em 1992, visando estimular o aprimoramento da cachaça artesanal mineira. E deu certo. O Pró-Cachaça, em pouco tempo, revolucionou toda a estrutura da cadeia produtiva da cachaça artesanal produzida em todo o território mineiro, e em Salinas não foi diferente.

Atualmente, existem mais de cinquenta marcas de cachaça produzidas no município. A produção já ultrapassa cinco milhões de litros por safra (anual). Tornou-se a importante região produtora de cachaça artesanal de Minas Gerais e do Brasil. Em 2006, foi responsável por 45,87% de toda a arrecadação de ICMS, imposto de circulação de mercadorias e serviços de competência estadual, em todo o território mineiro. O processo de diversificação da economia brasileira ao longo das últimas décadas vem forjando e incrementando atividades econômicas de produtos típicos da cultura do Brasil no mercado, com forte impacto nas economias locais. Salinas encontrou no agronegócio da cachaça uma atividade econômica que vem mudando o perfil de toda a sua economia, contribuindo para o seu desenvolvimento sócio-econômico.

Reconhecendo a cachaça como importante atividade econômica e cultural, o prefeito de Salinas, José Antônio Prates, por meio do Decreto Municipal nº. 3.728/2006, reconheceu a marca Havana, ícone das marcas produzidas no município, como Patrimônio Cultural Imaterial de Salinas, em face de sua história qualidade e notoriedade no mercado brasileiro e no exterior. Por meio do decreto, fato inédito no Brasil, o poder executivo municipal reconheceu o feito espetacular do produtor Anísio Santiago, empresário rural que conseguiu dar credibilidade e alto conceito de qualidade, em todo o território nacional e no exterior, da mais importante e genuína bebida brasileira: a cachaça.

Anísio Satiago foi o empresário local que conquistou o mundo não por altas cifras em faturamento e sim pela excelência de qualidade de um produto que foi e continua sendo concebido por método de produção ainda não decifrado pelos produtores de Salinas e de outras regiões de Minas Gerais e do Brasil. O segredo é guardado pelos filhos que vêm mantendo o processo de produção pelo mesmo método de origem. Anísio Santiago ultrapassou a barreira de empresário rural norte-mineiro que deu certo. Mais que isso, se tornou o símbolo de bebida que faz parte da história brasileira desde o século XVI, na década de 1530, quando o português Martin Afonso de Souza construiu engenhos na Capitania de São Vicente para a produção de açúcar e cachaça.

A Fazenda Havana, onde é produzida a bebida, se tornou em espécie de reduto sagrado do universo da cachaça brasileira ao longo das últimas décadas. O jornalista paulista Sidnei Maschio afirma que “Em vários lugares ao redor do mundo, as visitas exigem mesmo um ritual específico, coerente com a sacralidade que eles encerram. A Fazenda Havana está nessa lista. A propriedade poderia ser comparada a um templo, pelo papel na recuperação e na divulgação das melhores qualidades da bebida genuinamente brasileira. O universo da cachaça tem duas histórias distintas, uma antes e outra depois da Havana”.

Anísio Santiago foi homem que fez história no seu tempo com a sua lendária Havana. O depoimento de degustadores e especialistas ratificam a aura criada em torno do mítico produtor.
Vejamos alguns depoimentos:

“Historicamente, Anísio Santiago trouxe para Salinas fama e prestígio através da Havana. Soube valorizar a qualidade e agregar valor ao produto em mais de seis décadas de produção.” (JOSÉ ANTÔNIO PRATES, prefeito de Salinas).

“A fama da Havana atraiu para Salinas a atenção do Brasil e do mundo. A capital da cachaça tem o dever de reconhecer o seu maior benfeitor.” (ISRAEL PINHEIRO, político, filho do ex-governador Israel Pinheiro e produtor da Cachaça Cubana em Salinas).

“Anísio Santiago escreveu uma grande história e se tornou uma lenda. Mas há muito mais por trás da saga da produção da cachaça Havana – Anísio Santiago. Para mim uma garrafa de Havana guarda muito mais que uma bebida rara, ela preserva história, memórias e lembranças. Na Fazenda Havana não é produzida apenas uma cachaça. É destilado um sonho, a realização e a perpetuação de um sonho muito antigo”. (JANE SALDANHA, jornalista e repórter do documentário Cachaça de Minas – Programa Planeta Minas, Rede Minas).

“Anísio Santiago é uma lenda para nós. Do reconhecimento efetivo da Havana soube manter espírito investigativo e inovador na produção de cachaça, não se deixando deslumbrar pelo lucro que poderia ter.” (JOSÉ BONIFÁCIO DOS SANTOS, presidente da Confraria Clube da Cachaça de Brasília – DF).

“Se cachaça fosse carro, a Havana seria uma Ferrari.” (MILTON LIMA, fundador do site cachaças.com).

“Pesquisar sobre a cachaça de Salinas, nos últimos cinqüenta anos, forçosamente incluirá a pesquisa da marca Havana. Discorrer sobre essa marca, cuja trajetória é assentada na simplicidade e no capricho quase obsessivo de seu proprietário em manter, ao longo de várias décadas, um elevado padrão de qualidade, invariavelmente requer que se teçam comentários sobre quem a idealizou, cuidou e a construiu.” (ELIAS RODRIGUES DE OLIVEIRA, mestre em Administração Rural).

“Ainda não acostumei com a ausência de tio Anísio Santiago. Tive o privilégio de conviver com ele na Fazenda Havana por muitos anos quando jovem. Tudo
que sei sobre cachaça aprendi com ele. Com a Havana, ele projetou a cachaça de Salinas no Brasil.” (NOÉ SANTIAGO, sobrinho de Anísio Santiago e produtor da Cachaça Canarinha em Salinas).

“Anísio Santiago ia contra as teorias de marketing. Imagine um político ou um vendedor de bugigangas rejeitar aparecer na Rede Globo? Ele não ia atrás de
ninguém, as pessoas o procuravam como em romaria, tinha uma personalidade imantada. Inverteu a lógica vulgar e fez um marketing sólido, mais sólido que a nossa moeda. Apesar de ser proibido cunhar dinheiro, que é monopólio do estado, cunhou a Havana, pagando com ela seus empregados e suas compras. Anísio Santiago conseguiu ser uma lenda em vida, mesmo em cidade do interior onde os comentários são quase sempre negativos. 'Aquele é o Anísio da Havana', diziam orgulhosos os da terra aos amigos de fora, quando Anísio passava. A marca que criou cresceu e virou fetiche, invertendo a lógica criador criatura, pois a Havana é que
era dele, sua subordinada”. (APOLO HERINGER LISBOA, escritor, médico e professor de medicina da UFMG).

“Os filhos e netos de Anísio Santiago estão conscientes da responsabilidade de manter a tradição e o padrão de qualidade adquirido em décadas de produção.” (OSVALDO MENDES SANTIAGO, filho de Anísio Santiago e atual sucessor na produção da Cachaça Havana-Anísio Santiago).

Anísio Santiago faleceu em 22 de dezembro de 2002, aos 91 anos. Em vida foi uma lenda. Transformou-se no maior ícone da história da cachaça brasileira. É impossível falar ou escrever sobre cachaça sem tecer comentário ao seu nome e ao seu feito. Mesmo após a sua morte em 2002, ainda desperta curiosidade em muitas pessoas. Ainda muito se fala e se escreve a seu respeito e do legado que deixou. Deixou grande lição de vida e demonstrou que é possível crescer e construir uma vida respeitável e obter a admiração de todos. Sempre permaneceu fiel aos seus ideais e princípios que acreditou serem verdadeiros.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

FEIJÓ, Atanéia. MACIEL, Engels. Cachaça Artesanal: do alambique à mesa. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2002.

MASCHIO, Sidnei. Entramos no santuário da Havana. Jornal de Notícias, Caderno de Turismo, Montes Claros, 9 set. 2006, p. 16.

OLIVEIRA, Elias Rodrigues. A marvada pinga – produção de cachaça e desenvolvimento em Salinas, Norte de Minas Gerais. (Dissertação de mestrado em Administração Rural).
Lavras, 2000, 178 p.

RIBEIRO, Ronaldo. A safra seguinte. Revista National Geographic do Brasil, São Paulo, outubro de 2003, p. 32-39.

SANTIAGO, Roberto Carlos Morais. O Mito da Cachaça Havana-Anísio Santiago. Belo Horizonte: Cuatiara, 2006.

TRINDADE, Alessandra Garcia. Cachaça, um amor brasileiro. São Paulo: Melhoramentos, 2006.

WEIMANN, Erwin. Cachaça, a bebida brasileira. São Paulo: Terceiro Nome, 2006.


Anísio Santiago se tornou pessoa lendária com a sua famosa Havana.


Prêmio Excelência da Cachaça Anísio Santiago, concedido pelos
organizadores da VI Expocachaça, em Belo Horizonte (2003).


A Havana-Anísio Santiago se consagrou como marca ícone
da cachaça artesanal brasileira.


Marca pioneira em Salinas.


1968
O ANO QUE MUDOU NOSSAS VIDAS

Roberto Pinto da Fonseca
Cadeira N. 92
Patrono: Sebastião Tupinambá
É proibido proibir.
“Derrubar as prateleiras,
as vidraças, louças, vidros, sim.
E eu digo não,
eu digo não ao não.
Eu digo é proibido proibir.”
Caetano Veloso

Mil novecentos e sessenta e oito foi um ano especial, emblemático, produto de uma década mágica e repleta de situações extraordinárias. Quarenta anos depois, os reflexos de seus acontecimentos ainda repercutem pelo mundo afora. De diversas partes, espocaram acontecimentos que iriam, de alguma forma, modificar um pouco a face do mundo. Devido a essa efervescência, não se pode enquadrar os anos sessenta, e, sobretudo 68, dentro de uma normalidade. Foi uma época de contestação geral da ordem vigente, de crise existencial mundial, de perplexidades.

Era um tempo em que ainda se pensava em utopias. A geração de 68 pulsava por transformações, questionamentos, revoluções e liberdades. Hoje, frente ao neoliberalismo, essa palavra já não faz sentido.

Em todos os cantos do mundo, movimentos de massas, sob as mais variadas formas de governo - comunista, capitalista, liberal ou conservador -, gritavam contra os tabus, os valores sociais vigentes e as instituições. Ansiavam por novas idéias.

Para o sociólogo francês Edgar Morin, vivia-se o “êxtase da história”. Segundo ele, “vão ser precisos anos e anos para se entender o que se passou.” Raymond Aron assustou-se com a “demência e o psicodrama coletivos”, mas, posteriormente, concordou que 1968 mudou a face da França. Referindo-se aos movimentos estudantis ocorridos na França naquele ano, o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre, figura marcante do período, declarava que não havia entendido bem toda aquela ebulição social,

Para a maioria dos brasileiros, o ano de 1968 remete a um tempo louco, quando uma geração de “cabeludos e porralocas” queriam anarquicamente mudar todo o sistema social.

Infelizmente, não se tem ainda uma visão reflexiva desse momento, em que a sociedade buscou mudanças, tentou estabelecer um projeto radical envolvendo a sexualidade, a política, a economia, o comportamento humano em geral. Um tempo que se pretendia generoso, governado pela “Era de Aquários”, polêmico, mas não se pode negar que as tendências libertárias de 68 fazem eco até os dias atuais.

Foi um ano de partida para o desenvolvimento de muitos movimentos e questões sociais: a preocupação com as minorias, a não aceitação de qualquer forma de racismo, o movimento negro (“black is beautiful”), o ecumenismo religioso, as organizações não-governamentais, o movimento gay, o papel da mulher na sociedade, o meio ambiente, a ecologia, os direitos humanos, a crítica contundente aos regimes políticos, às instituições e aos meios de comunicação como manipuladores da opinião pública, a idéia de globalização etc.

Apontar especificamente as causas que deram origem a 1968 é uma tarefa complexa, pois, para qualquer direção que seaponte, descobre-se novas tendências, reformulações, questionamentos sociais, irreverências e desmistificações.

Muitas foram as causas que levaram o mundo, naquele ano, à ebulição. Dentre elas, o repúdio generalizado à Guerra Fria, praticada entre os EUA e o mundo comunista, capitaneada pela então todo poderosa União Soviética. Outro aspecto importante foi a entrada dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. Desde 1965, tropas foram enviadas para combater os vietcongs, comunistas do Vietnã do Norte. Assim, buscavam proteção para o Vietnã do Sul contra uma possível invasão e vitória dos guerrilheiros comunistas. Mas com as sucessivas derrotas militares dos americanos no Vietnã, a nação mais poderosa do planeta começou a ser questionada em todos os cantos do mundo, sobretudo no ocidente. Como um poderio militar como o dos EUA sofria aquelas perdas, impondo um tremendo custo de vidas de soldados americanos e da população civil das áreas do conflito e não apresentava uma solução rápida? Como uma pequena nação do Terceiro Mundo não se sujeitava aos Estados Unidos? As imagens do conflito, mostrando o sofrimento dos soldados e da população vietnamita percorreram todo o mundo, provocando ondas de indignações e protestos.

Com a bancarrota dos EUA no sudeste asiático, muitos, sobretudo os jovens, perceberam que a ordem vigente representada pelos americanos poderia ser contestada. Era o momento de romper com todas as amarras sociais e políticas, questionar abertamente todos os regulamentos e formas de conformismo, lutar por mais liberdade, ir contra o “satus quo”.

Outro fenômeno ocorrido na época e que provocou tremenda influência nas massas foi a Revolução Cultural Chinesa. O líder Mao-Tse-Tung conclamava todos os jovens da China a lutar contra as forças conservadoras e romper com os laços do passado cultural chinês, buscando construir uma nova sociedade na China revolucionária. Os milhões de jovens chineses desfilando, agitando suas bandeiras vermelhas e gritando seus brados a favor da nova ordem inflamavam as mentes.

Contribuíram também a Revolução Cubana e a morte, um ano antes, nas selvas bolivianas, de um dos seus mais carismáticos líderes: Ernesto Che Guevara. A figura do médico argentino que abandona tudo e se liga de corpo e alma às causas revolucionárias para a libertação dos povos oprimidos e pela luta por justiça social fez com que milhares de jovens seguissem seu exemplo, aderindo sobretudo aos movimentos guerrilheiros: lutar pelo povo e pela causa revolucionária contra o imperialismo ianque, mesmo com o custo da própria vida.

Já no início dos anos sessenta percebiam-se os novos ventos de mudanças radicais. As palavras de ordem eram contestatórias, sugeriam romper com os antigos valores e o estabelecimento de novos. As formas de romper com o sistema começavam pela aparência: cabelos longos, sobretudo para os homens, calças jeans, camisas coloridas, sandálias, colares - era preciso chocar os mais velhos.

Nos campi universitários americanos surgem os primeiros “hippies”. O mentor intelectual desses grupos era Timothy Leary, renomado professor de psicologia de Harvard. Pregava o uso indiscriminado de drogas como maconha, LSD e mescalina, como forma de buscar novos caminhos da mente e da percepção humana. Milhões de jovens se enveredaram pelos caminhos dessas substâncias alucinógenas, à procura de “paz e amor”, na fuga das angústias existenciais.

A juventude escuta muito rock, se relaciona despreocupadamente. As garotas usam minissaias e, diferentemente de suas mães, contam com a pílula anticoncepcional para se protegerem de uma gravidez indesejada. Reivindicam, assim, o direito ao prazer sexual, o que leva o Vaticano a publicar uma encíclica condenando a utilização de anticoncepcionais.

“Sexo, drogas e rock-n-roll” era o lema vigente. Janis Joplin e Jimi Hendrix, grandes ídolos, morrem prematuramente devido ao consumo excessivo de drogas. Os Rolling Stones e os Beatles explodem nas paradas de sucesso. O grupo, comando por Lennon, viaja à Índia para conhecer o guru Maharishi Yogi, estabelecendo, assim, uma ponte entre o ocidente e a espiritualidade oriental.

Herbert Marcuse, filósofo e sociólogo alemão naturalizado americano, torna-se o mentor intelectual de grupos de jovens pelo mundo, sobretudo dos movimentos estudantis. A novidade de seu pensamento estava na supervalorização do papel do jovem como instrumento de mudanças sociais. Encarnava o papel do “intelectual engajado”, responsável pelas questões de seu tempo e das mudanças necessárias. Segundo seu pensamento de “cont racul tura” , contes tado pelo “establishment”, a utopia, o radicalismo e a ação direta eram importantes para a cristalização de mudanças sociais e para legitimar a rebelião, sobretudo contra a ordem capitalista. “Eros e a Civilização”, um de seus mais importantes livros, ainda ecoa nos dias de hoje.

Na França, ocorre o “Maio de 68”, um dos movimentos mais radicais contra a ordem vigente. Milhares de estudantes foram para as ruas de Paris e, entre passeatas e barricadas, conseguiram abalar o governo autoritário e anacrônico de Charles de Gaulle, o maior ícone dos franceses do pós-guerra. Enfraquecido, o presidente deixa o governo em abril de 1969, depois de 10 anos no poder. Os movimentos contestatórios
mostravam, na prática, o seu poder de abalar as estruturas.

No México, os universitários se rebelam contra o governo do presidente Gustavo Diaz Ordaz, que autorizou a invasão da Universidade do México. Essa ação, que causou a
morte de centenas de jovens e a prisão de milhares, ficou conhecida como o “Massacre de Thatelolco”. Os protestos duraram aproximadamente dois meses, e os estudantes quase conseguiram boicotar os Jogos Olímpicos que estavam sendo realizados no país. Nessa mesma ocasião, o espírito rebelde de
68 se manifestou quando dois atletas norte-americanos, ganhadores de medalhas, subiram ao pódio e durante a execução do hino nacional americano, fizeram o gesto de saudação dos Panteras Negras, grupo radical contestador norte-americano. Nunca um pequeno ato obtivera tanta repercussão.

Outro movimento que chamou a atenção do mundo foi o denominado “Primavera de Praga”, no qual o povo tcheco, liderado por Alexander Dubceck, pleiteou reformas democráticas numa sociedade sufocada pelo regime comunista. O lema de Dubcek era o “socialismo com face humana”. O sonho, porém, durou pouco: em 20 de agosto de 1968 as tropas do Pacto de Varsóvia, lideradas pelos russos, invadiram e reprimiram com a brutalidade típica dos regimes autoritários um povo que queria apenas liberdade.

Apesar da agonia sofrida pelo povo tcheco, a “Primavera de Praga” revelou-se como sendo mais um brado contra o imperialismo - desta vez russo, que seria desbaratado muitos anos depois pela Glasnot de Gorbachev.

Na Alemanha, os protestos estudantis e os duros processos de repressão por parte das autoridades tiveram como conseqüência a formação de grupos terroristas, como por exemplo o Baader Meinhoff. Situação análoga ocorreu na Itália, quando alguns estudantes criaram as Brigadas Vermelhas, responsáveis por sangrentos atentados terroristas. Essas ações, infelizmente, foram vertentes das marés contestatórias, quando alguns grupos optaram pelo terrorismo indiscriminado. De lugares distantes surgiram grupos com as mesmas tendências, como os Montoneros (Argentina), VPR (Vanguarda Popular Revolucionária - Brasil), Panteras Negras (EUA) e Tupamaros (Uruguai). Esses grupos foram basicamente oriundos da vontade popular de romper com o sistema político opressor, mesmo com o alto custo de perda de vidas.

Na América Latina, muitos grupos organizados que buscavam mudanças sociais tiveram como única opção a luta armada, uma vez que os regimes totalitários aos quais se contrapunham eram extremamente refratários a qualquer espécie de contestação. Alguns desses movimentos, criados em anos anteriores, continuaram suas ações mesmo na década seguinte, fortalecidos que foram pelo espírito de 1968.

A trajetória atípica desse ano continuava: a 4 de abril foi assassinado um dos maiores ícones dos direitos humanos, o pastor Martin Luther King. Porta-voz das minorias negras americanas, sua morte provocou fortes ondas de protestos em todo o país, repercutindo pelo mundo. Outro assassinato que provocou comoção em solo norte-americano foi o de Robert Kennedy, símbolo da política americana, tragicamente assassinado, como fora o seu irmão, o presidente John Kennedy em novembro de 1963.

Entre o encantamento e a incredulidade de uma humanidade pasmada, a nave espacial americana Apollo 8 gira em torno da lua. Esse ato abriu o grande cenário das conquistas espaciais que viria no ano seguinte, quando o primeiro ser humano, na figura do astronauta Neil Armstrong, deixou definitivamente gravadas em solo lunar suas pegadas.

Outro espanto foi a estréia escandalosa do musical Hair na Broadway, em Nova York, com cenas de nudez, fortes apelos sexuais e ao consumo de drogas.

O político ultraconservador Richard Nixon ganha as eleições pelo Partido Republicano, tornando-se o 37º presidente americano.

Na esteira dos acontecimentos mundiais, os jovens brasileiros dos grandes centros urbanos dedicavam-se a atividades intelectuais ou pacifistas. Discutia-se muito política nos bares, nos locais de lazer, nas universidades, nos ambientes de trabalho e em centros estudantis. Outros, sob o lema da paz e do amor, buscavam as experiências de vida em comunidades hippies. Nos lares, os filhos questionavam as idéias dos pais.

A viagem de Sartre e Simone de Beauvoir ao Brasil em 1960 ainda causava comoção. Ser de esquerda e marxista era a tônica da maioria dos jovens, mas ser existencialista era o suprasumo.

Em março, no Calabouço, restaurante estudantil do Rio de Janeiro, organizou-se uma passeata de protesto contra o regime militar. Os manifestantes entram em choque com a Polícia Militar e, no desenrolar do conflito, morre baleado o estudante paraense Édson Luís de Lima. Do seu enterro participaram 50 000 pessoas que aguçaram os protestos contra os militares. Em diversos Estados surgiram revoltas, o que levou o governo à tentativa de decretar estado de sítio no Rio de Janeiro, Distrito Federal e Goiás. Posteriormente, em junho, é realizada a maior manifestação civil contra o regime militar, a passeata dos 100 mil, na avenida Rio Branco, também no Rio de Janeiro. No rastro dos acontecimentos, milhares de trabalhadores e operários das mais
diversas categorias entram em greve geral. As cidades de Osasco e Contagem são os principais focos. Os sindicatos dos trabalhadores, sempre na mira das intervenções dos militares, se rebelam, ganhando força política. Nesse ano, um simples torneiro-mecânico, Luis Inácio Lula da Silva, se filia ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Muita história viria depois.

A igreja católica progressista alia-se aos estudantes e às camadas mais carentes da população. Endurecem as relações entre a Igreja e o Estado. Muitos padres são presos, torturados. Religiosos estrangeiros são expulsos do Brasil. Os militares acusavam o clero progressista de atender aos “objetivos do comunismo”. Os setores radicais do clero entram em confronto com as alas progressivas. A igreja se divide. O Ministro da Justiça, Gama e Silva, reconhece como lícita a atuação da organização denominada TFP (Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade). Recrudesce o antagonismo dentro da Igreja. As comunidades Eclesiais de Base (CEBs) ganham força junto às comunidades carentes de todo o país, fortalecendo as relações entre os leigos e as paróquias. As questões religiosas e sociais se fundem. A ala conservadora, no entanto, provocaria fortes abalos no setor progressista. Mas as bases de uma Igreja voltada para os problemas sociais e políticos estavam firmemente
plantadas.

O C.C.C (Comando de Caça aos Comunistas), surgido no governo de João Goulart, volta em grande estilo atacando sindicatos, principalmente de jornalistas, combatendo os movimentos estudantis e tudo aquilo que mostrasse alguma tendência que fosse contra os ideais do regime militar. Metralham o prédio da Faculdade de Direito da USP e queimam o prédio da Faculdade de Filosofia, também da USP, em São Paulo. Esse
episódio, no qual morreu um estudante, ficou conhecido como o “confronto entre Mackenzie e Filosofia”. Os estudantes da Universidade Mackenzie, de tendência conservadora e influenciados por membros do C.C.C, enfrentam na rua Maria Antônia, na capital paulista, os estudantes liberais da Faculdade de Filosofia da USP. Um dos líderes dos estudantes da USP na época, então presidente da União dos Estudantes, viria a ser mais tarde ministro do governo Lula, José Dirceu.

Em outubro, numa fazenda próxima a Ibiúna - SP, realiza-se o 30º. Congresso da União Nacional de Estudantes. Todos os 900 participantes são presos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional.

A escalada do terrorismo nacional, tanto de esquerda como o de direita faz estragos e vítimas em diversos pontos do território nacional. A direita pratica 24 atentados contra 10 atos terroristas da esquerda.

Em 13 de dezembro, diante da grave situação política e social pela qual a nação passava, é decretado o Ato Institucional No. 5. O governo Costa e Silva decreta o recesso do Congresso Nacional, a suspensão de todos os direitos políticos de qualquer cidadão, além do poder de intervir nos Estados e Municípios. O estado de sítio pode ser decretado conforme as conveniências necessárias. O Estado passa a assumir o controle total da sociedade. São adventos dos tempos negros da ditadura militar no Brasil.

Entretanto, mesmo diante dessas agressões aos direitos civis, o brasileiro vivenciou grandes momentos de emoção, como ocorreu em maio, ante a capacidade da ciência nacional, com a realização, pelo médico Euryclides Zerbini, do primeiro transplante de coração do Brasil, seis meses após a realização do primeiro transplante no mundo, pelo Dr. Bernard, na África do Sul. O paciente, de 23 anos de idade, João Fernandes da Cunha, sobreviveria apenas 27 dias. Mas o Brasil se tornaria uma referência mundial em tratamentos cardíacos.

Nas artes, é dado o pontapé inicial para a Tropicália com o lançamento do disco Tropicália – Panis et Circencis – com a participação de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Os Mutantes, Tom Zé e Nara Leão. No IV Festival da TV Record, em São Paulo, o público, chocado com a letra da canção “È proibido proibir”, de Caetano Veloso, o vaia calorosamente. Ainda não digere o vanguardismo cultural que se iniciava. Do palco, o cantor grita: “ Mas é isso o que é a juventude que se diz que quer tomar o poder? São a mesma juventude que vão sempre matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem. Vocês não estão entendendo nada, nada”.

“Essa música é atentatória à soberania do País, um achincalhe às Forças Armadas e não deveria nem mesmo ser inscrita.” Foi dessa forma que o General Luís de França Oliveira, secretário de Segurança da Guanabara, referiu-se à canção de Geraldo Vandré, “Caminhando”, (“quem sabe faz a hora, não espera acontecer”), uma das classificadas no III Festival Internacional da Canção. Posteriormente, os militares pediram a prisão do compositor, enquadrado como subversivo.

Ao mesmo tempo em que escandalizava a nação, a atriz Leila Diniz servia de modelo para o ainda insípido movimento feminista nacional, numa época em que as mulheres geralmente pouco saíam de casa, completamente submetidas aos maridos. Com sua beleza, nudez, despojamento, adesão ao amor livre, serviam de bandeira contra o conservadorismo.

A TV em preto-e-branco era de pouca penetração e não dominava como agora o pensamento das pessoas. A mídia era música e cinema. Os caras mais alienados gostavam de Roberto Carlos e da Jovem Guarda, enquanto os politizados optavam por Chico Buarque, Caetano, Gil, Tropicália e a Bossa Nova.

Lia-se muito: Eric Hobsbauwn, Lukács, Marcuse, Caio Prado Júnior, Sartre, Lênin, Gramsci, Althusser, Mão, Herman Hesse, James Joyce, Norman Mailer, Régis Débray, Adorno, Guevara, Walter Benjamin e outros.

Muitas das questões engendradas em 1968 podem ter sido incongruentes, utópicas, irrealizáveis ou ainda estão em processo de gestação. Mesmo assim, não se pode negar que os acontecimentos daquele ano, de uma forma ou de outra, contribuíram para uma nova forma de agirmos e pensarmos a nossa existência. Evidentemente que surgiram muitos atos negativos e equivocados, como a apologia ao uso de drogas, a luta armada, os seqüestros, a intolerância e radicalismos tanto de grupos políticos de esquerda como de direita. Porém, não se pode discutir que as buscas posteriores por mudanças foram influenciadas pelos acontecimentos de 1968. Esse ano também contribuiu para mostrar às gerações futuras que muitas causas e idéias defendidas na época não passavam de tremendos engodos. Muitos sistemas políticos, em especial os de tendências socialistas, demonstraram que eram opressores, muitas vezes utilizando os mesmos instrumentos de persuasão e controle dos regimes que combatiam. Acreditava-se que a política era o principal ordenador do comportamento humano.

Os principais legados da geração de 1968 foram, em síntese, o total repúdio ao autoritarismo e a defesa irrestrita dos direitos civis. Os heróis daquele ano mágico foram os jovens que amavam os Beatles e os Rolling Stones. Uns morreram por seus ideais, alguns se perderam pelo meio do caminho e muitos seguiram em frente. Uma geração que dizia “não confiar em ninguém com mais de trinta anos” e que buscou sofregamente, num curto período, as soluções para o seu tempo e o das gerações futuras. Num país de memória quase inexistente, onde os acontecimentos históricos são pouco conhecidos, o maior legado que aquela geração nos deixou foi a capacidade de ousar, de agir e de atuar, fazendo com que aquele momento histórico seja relembrado hoje e sempre. Como na canção de Geraldo Vandré, ensinaram-nos que “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.”


Geração 1968


A RÉPLICA DO MERCADO MUNICIPAL

Ruth Tupinambá Graça
Cadeira N. 96
Patrono: Tobias Leal Tupinambá

Foi em 1996 que eu fiquei encantada com o entusiasmo com que Wanderlino Arruda, secretário municipal naquela época me falou do seu Programa de Trabalho e principalmente sobre a construção de um teatro com a réplica do antigo Mercado Municipal e no mesmo local.

Graças a Deus ainda existem homens como Wanderlino, que valorizam o passado e procuram preservar os monumentos que traduzem e conservam a memória da nossa cidade. Mas infelizmente Wanderlino pregou no "deserto"... E a réplica do Mercado Municipal caiu no esquecimento.

E quem não se lembra do nosso antigo Mercado Municipal que durante muitos anos dominou a praça Dr. Carlos? Por alguns era considerado grotesco e mal construído, mas para os outros ele era o máximo. Considerando as dificuldades em que fora construído, ele merecia um voto de louvor.

Em 1897, quando então presidente da Câmara o Dr. Honorato Alves, comerciantes daquela praça, fizeram um ofício pedindo-lhe a construção de um mercado moderno que satisfizesse as necessidades da nossa comunidade. O pedido foi atendido, a planta foi feita por um engenheiro da época e João Fróis, um "prático" curioso, apressado e com muita vontade de servir, achou por bem, não fazer alicerces de pedra (como projetara o engenheiro) resolvendo por sua conta, fazer o travamento de madeira. E para andar mais depressa suprimindo algumas exigências da planta.

Como todos os acontecimentos existem os prós e os contras, com o Mercado aconteceu o mesmo.

Na cidade já existiam dois partidos o "de Baixo" e o "de Cima" e iniciando a construção, começou uma guerrinha. Os "de Cima" aplaudindo a idéia e os "de Baixo" fazendo grande pressão.

A construção foi rápida e uma certa noite, toda a cidade acordou com um forte estrondo.

A esperteza de João Fróis deu zebra. O Mercado que já estava de cumeeira inaugurada com cerveja e tudo mais, havia desabado, felizmente sem vítimas. Com isto os "de Baixo" ficaram contentes e os "de Cima" se lastimavam. Foi uma tragédia, mas não desanimaram.

Novas lutas, novos fracassos, mas a vontade maior dominava aquele "formigueiro humano". O Cel. Antônio dos Anjos, grande batalhador contra os problemas da cidade, embora desapontado, não perdeu a cabeça e, liderando uma turma de amigos, foi de casa em casa, com uma subscrição para recomeçar a obra.

Cassimiro Mendonça (meu avô) encabeçou a lista com 200$000. Foi um escândalo! E a cidade toda comentou a sua doação chamando-o de "estróina" e gastador e assim, milagrosamente, as doações se multiplicaram. Em pouco tempo o Cel. Antônio dos Anjos (pai do Cyro dos Anjos) conseguiu 2.360$000 e desta vez seguiu-se as instruções do engenheiro, e a 2/09/1899 sendo presidente da Câmara Simeão Ribeiro dos Santos, o Mercado foi solenemente inaugurado.

A partir desta data ele tornou-se o assunto da cidade. Um enorme casarão branco (tipo chalé) com quase 30 metros de frente e 32 de fundos, com sete cômodos de cada lado para as vendas, onde se instalaram os comerciantes daquela época. Ao centro, uma enorme área vazia onde os tropeiros e bruaqueiros espalhavam suas bruacas. Mais tarde ampliaram-no com uma torre de 17 palmos, onde colocaram um Regulador Público inaugurado em 1906, com muita festa já no governo do Dr. Honorato Alves.

Este mercado foi por muitos anos o ponto vital da nossa cidade, onde a preferência para os "bate papos", assuntos políticos, religiosos e sociais, negócios, decisões familiares, até batizados, casamentos e desquites, tudo era ali discutido e não existia lugar melhor para as "fofocas".

Aos sábados, tornou-se o hábito de todos, era o dia da feira. Todos os moradores da nossa cidade antiga dirigiam-se ao Mercado para fazerem suas compras. Era feira de verdade onde se encontrava de tudo: arroz com casca ou socado no pilão, açúcar mascavo, rapadura cerenta gostosa, doce de cidra, laranja em formas embrulhadas em folhas de bananeiras, batidas de Santo Antônio, café em grão (torrado em casa) tão saboroso.

Os bruaqueiros com enorme variedade de mercadorias iam chegando, aos poucos, desde a madrugada e enchendo o Mercado: farinha de milho bem torradinha, queijos, requeijões, farinha de mandioca do Morro Alto, beiju de goma tão clarinhos. As carnes de porco, carne de sol de "dois pelos", em grandes montes.

Colocados em giraus de madeira, muita lingüiça feita em casa, com muito tempero, cheirosa... muita fruta: banana roxa, mulata, caturra, cachos enormes, lima da Pérsia (que hoje não existe mais), coco azedinho, muita manga rosa, espada, sapatinha, umbu, tão bonitas! Melancias aos montões, verdinhas e lustrosas, cabeça de negro, panâs, araticum, gravatás, pitombas, tamarindos, jatobás, e o nosso célebre pequi. Muito caldo de cana, tabuleiros enormes de bolo de arroz, doce de mocotó de boi, daquele escurinho, gostoso, sem sofisticação.

Biscoito caseiro, cascorão, mingau de milho verde, pamonha, goiabada embrulhada em palhas de milho, uma delícia.

Os bruaqueiros ofereciam suas mercadorias naquela simplicidade do caipira: "Compra minha dona, é feijão novo catado, cozinha ligirim, com uma só água, arroz do bão mesmo, cuido agora e socado no pilão, sem quebrá, os ovo fresquinho, cuido de manhãzinha ovo de galo bão mesmo".

As mocinhas da roça que vinham vender suas verduras cultivadas na beira dos regos (abóboras, quiabo, chuchu, maxixe, tomatinhos para molho, salsa, cebolinha; tão verdinhas) eram bem bonitinhas de vestido novo de chita, um "rouge" muito vermelho, boquinha de coração, brincos e colares de contas coloridas, mas quando riam mostravam sempre falhas de dentes na frente. Era uma pena. De boca fechada até que passavam. Mas mesmo assim com toda "jecura", faziam conquistas, com moços da cidade que lhes davam uma "colher de chá".

No fundo do Mercado, do lado de fora ficavam os animais e também as bruacas espalhadas pelo chão. Muito fumo de rolo e cachaça em "banquinhos" atrás do Mercado. Era ali o paraíso dos roceiros. Um cheiro forte de pinga e fumo espalhavase por todo o Mercado. No final do dia havia sempre bruaqueiros "escornados" no chão, dormindo com o chapéu no rosto, protegendo-se do sol. Na maioria das vezes nem este cuidado tinham e com a boca aberta lambuzada, roncavam alto, enquanto os mosquitos passeavam saboreando, entrando e saindo, escondendo-se nos bigodes molhados de pinga e saliva.

Os animais eram tão mansos que não se espantavam nem davam coices. Eram mesmo treinados para transportar bruacas pesadas e bruaqueiros folgados e pacientemente esperavam que seus donos fizessem bons negócios, dessem suas "voltinhas proibidas", bebessem à vontade, não tinham hora certa para voltarem para casa. E o dia inteiro era aquele movimento no Mercado.

Eram comum vê-los voltando para casa, à tardinha, alguns montados e tocando cargueiros; outros bêbados procurando se equilibrar em cima do cavalo, tombando de um lugar para outro, conversando sozinho; outros a pé com alpercata de couro cru, chapéu desabado pelo tempo e pelas chuvas, cigarro de palha no canto da boca, tocando seu burrinho lerdo, as bruacas vazias, e os "cobrinhos" no bolso. Iam felizes da vida, já pensando na feira do próximo Sábado, para tomar outra bebedeira.

Este espetáculo durou anos. A cidade cresceu e aos poucos foi se modificando. Estas lembranças simples ficam guardadas em nossos corações.

O Mercado anos depois foi demolido. A Praça Doutor Carlos perdeu seu companheiro. A cidade assistiu tristemente àquele espetáculo como se fosse o enterro de um amigo. E com isto a cidade vai se descaracterizando, perdendo o encanto natural. Os casarões e os sobrados que nos lembram HISTÓRIAS DO PASSADO estão desaparecendo...

O relógio antigo do Mercado Municipal está hoje silencioso na Catedral. Era ele que durante anos quebrava a monotonia daquela praça, com suas fortes e compassadas badaladas, cujo eco levava para longe, desaparecendo por trás dos montes.

Quantas vezes acordavam as crianças para a escola e os homens para o trabalho com seu badalar amigo e pontual?

Ele hoje deveria estar ainda funcionando para ver e sentir o progresso desta cidade, que ele viu engatinhando e dando os primeiros passos! Agora nos resta a saudade e a esperança de que a cidade acorde, grite e proteste contra a demolição dos monumentos do nosso passado.


O antigo Mercado Municipal de Montes Claros.


EXPOSIÇÃO DO PINTOR SAMUEL DE SOUZA FIGUEIRA

Wanderlino Arruda
Cadeira N. 33
Patrono: Enéas Mineiro de Souza

"... de azul-claro e de rosa devíamos todos revestir uma
fração de nossa vida, já que não é possível pintá-la
completamente de cores tão puras.”

CARLOS DRUMOND DE ANDRADE - "Fala, Amendoeira"

A semente, para libertar o vegetal que conduz em germe, não se nega a vencer o solo que a agasalha... A ação da semente em busca da vida é reflexo de amor puro do Criador, o mesmo ato de vibração e equilíbrio que movimenta as existências de todas as coisas e de todas as criaturas. A vida é amor, é brilho que palpita a luz, a sabedoria e a beleza, erguidas à glória da imensidade, como o rio que busca o oceano e não se detém ante os obstáculos que lhe impedem o curso. O amor é plasma divino com que envolve tudo o que é criado. O amor é o reflexo da ordem universal, sentimento de pureza, eternamente em busca do belo e da perfeição. O amor é doação de cada ser em favor dos demais, um hálito de fé, fundamento da justiça e da força que nasce da
própria alma, como que uma certeza instintiva da Sabedoria Divina.

Se o amor é sublimação do instinto, é vibração de luz espiritual, é sensibilidade sem medidas, nada melhor para definir os sentimentos que nos trazem aqui, todos nós, como eloqüente ato de amar. Amor à amizade, amor à admiração, amor à excelsitude do ideal do artista, amor à exteriorização do bem, deificada manifestação de um plano mais alto que polariza as esperanças do amanhã. Estamos aqui, contritos, no altar da beleza e emoção artística, para fruir os talentos da fidelidade contemplativa do agradável, tangendo as cordas mais vibráteis do nosso sentimento, abrindo um caminho infinito de transcendências entre o real e o utópico, numa busca eterna das manifestações supremas da harmonia e da verdadeira arte.

Estamos, aqui, para compreender e sentir as emoções de um companheiro e amigo, o construtor da beleza, o edificador de plasticidades e relevos, o tradutor de cores e movimentos, sempre afeito ao trabalho bem organizado e alvissareiro da perfeição técnica, que caminha em direção a valores cada vez mais voltados ao verdadeiramente humano e espiritual. Estamos, aqui, para apresentar o homem e o artista, o criador e a criação, a arte e o sentimento do artista que ela conduz. Entregamos oficialmente ao mundo cultural de nossa região, na sua primeira mostra individual de pinturas, o já conhecido pintor SAMUEL DE SOUZA FIGUEIRA, floração espontânea de traços e de coloridos, síntese profunda de qualidades transcendentais que honram a sua terra e a sua gente, o bom e altaneiro povo de Montes Claros.

A arte, o patrimônio artístico, do passado e do presente, todos ou quase todos, que aqui estão, já viram e contemplaram de olhos admirados, de corações mergulhados no otimismo, numa quase que profecia de vitória. A arte está aí, vivida, palpitante, explodindo em ricas tonalidades e ritmos de rara beleza, como que a dançar um balé, ao mesmo tempo de fantasia e de rude franqueza. A arte, o fruto do psiquismo é resultante do mundo íntimo do artista, é riqueza de esferas mais altas, resultante de recordações infinitas e ao mesmo tempo figurações concretas da realidade de cada um. Deixemo-la para o fim. Falemos, agora, do artista. Conheçamos o autor, estudemos SAMUEL DE SOUZA FIGUEIRA.

Montesclarense, da Rua Dr. Santos, nascido em casa velha com soleira de pedra bruta na porta, no vendaval de poeira do número 249, e do centro dos barulhos políticos do final do ano de 1946. Parece que o menino já nasceu de olhos abertos para as nuanças da vida, buscando sensações visuais e perspectivas. Começou cedo no mundo da arte, pois aos cinco anos de idade fez seleção no Grupo Francisco Sá com uma bonita prova de desenho. Aluno de Terezinha Pimenta, nos bancos da escola. Aluno de Godofredo Guedes, nos bancos da oficina. Mas, aí, aluno sem ser aluno, porque estudante apenas de observações, de perguntas, de tomar tintas emprestadas, de experimentar a maciez dos pincéis. Ao lado do mestre, o grande início da aprendizagem dos tons, das misturas, dos matizes, de características especiais que fazem um artista. A cópia, os decalques iniciantes, os primeiros passos em direção de
combinações novas. Aprende alguma coisa e, aos dez anos, a exposição inicial nas vitrinas da casa Luso-Brasileira, mais para agradar a parentes e professores e para entusiasmar a colegas do educandário.

Um dia o garoto toma coragem, veste a sua melhor roupinha, põe na cara o melhor dos sorrisos, e corre pressuroso em busca do elogio e do incentivo do já famoso futuro colega Konstantin Christoff. Leva o mais trabalhado dos quadros, aquele mais acadêmico, mais certinho, de pinceladas bem cuidadosas. Pede a opinião e baixa a vista, modesto, temendo, antecipadamente, as palavras de louvor. Mas tudo sai ao contrário. Konstantin, jovem e fogoso, não sabe mascarar a verdade. Não gostando, diz sinceramente ao menino que não gostou. Faz mais: manda-o ir embora, esquecer o entusiasmo, jogar fora os pincéis e as tintas e tentar fazer outra coisa mais condizente com a sua vocação, que, de natural, pelo que via, não seria a de pintor. O menino revolta-se, fica com o espírito em brasa, assustado, coça a cabeça e, imediatamente resolve aceitar o conselho, a sugestão... Chateado, sai e volta para casa, triste e meditativo, conclui que está diante de um grande desafio: nem Konstantin, nem ninguém pode sufocar o seu desejo, sua vontade de ser artista. Se com aquelas palavras Konstantin estava querendo despertá-lo, provocá-lo, iria ver, iria conhecer a sua reação, o seu grito de luta em busca de novo mérito. O que fez então o menino? Voltou a sua energia em direção ao próprio crítico e conselheiro, produzindo, na hora, a sua primeira e revolucionária composição moderna, uma mesclagem de variações geométricas e instrumentais, em cores robustas e enérgicas, com pinceladas marcantes. Para compor o rosto, desenhou uma chave inglesa, representando todo o conjunto facial; para traduzir o cachimbo, enfiou-lhe um machado bem
tosco na boca. Resultado: uma figura chocante, mas de grande
efeito. O crítico gostou. Gostou tanto, que o aconselhou agora a
buscar de novo, e com muito amor, os velhos pincéis baratos e
que partisse para a realização de novas tentativas. Procurasse ser
menos Godofredo e muito mais Samuel.

Data daí a nova fase da vida do artista. Pouca produção, mais procura de melhor qualidade. Idéias sobre idéias. Formas sobre formas, transparências e coloridos novos. Entusiasmo comedido, mas firmeza no ideal. Três cousas, entretanto, afastam-no do aprimoramento natural: o trabalho, os namoros, as pescarias. A vida começava a apresentar problemas. O trabalho, uma necessidade; o namoro, sublimação; as pescarias, o encontro com a liberdade e a natureza, sua melhor amiga. Assim, um quase hiato no caminho da arte, meses e anos de pequena ou quase nenhuma produção.

O amor transforma-se em paixão e vem o casamento. Com o casamento, a prisão do amor. Com o amor, os incentivos da arte, e, de novo, a inspiração. Duas mulheres, uma após outra, ou uma juntamente com a outra, dão-lhe nova importância no ato de viver. Duas morenas tocam-lhe o coração e dinamizam a sensibilidade. E, com o amor remove montanhas, MILA e ADRIANA abrem ao poeta das cores a renascida e gloriosa avenida do talento, para um não mais parar de instituir belezas.

Quando Konstantin Christoff lança a idéia de feira de arte para velhos e novos, Samuel e todos nós atiramo-nos ao trabalho e à divulgação, conclamando participantes e admiradores pedindo aceitação pública, marcando, em Montes Claros, a nova etapa de uma fase de civilização. Unidos, conscientizados, armados de audácia e coragem, temos enfrentado todos os obstáculos, mas, graças a Deus, sempre vitoriosos, principalmente o SAMUEL.

Com mais de duzentos quadros produzidos e com esta Exposição, SAMUEL marca definitivamente a sua permanência no mundo da pintura. Daqui para frente, o artista é, não mais estará sendo como parecia que fosse. Forneça-lhe o mundo o azul, o amarelo, o branco e o vermelho, que ele transformará em colorido o próprio mundo. A sua sensibilidade pelo fator humano e social não terá limites. As preocupações urbanas, as angústias dos tempos modernos terão uma tintura nova e audaciosa. O simbolismo das flores fará contrastes com a singeleza dos fundos, com o rubro dos sóis, com o cinza quase cerúleo dos infinitos. Os vícios, as fraquezas humanas estarão iridescentes de misticismo, numa espécie de religiosidade que o autor não tem, não procura ter, mas que mostra na exteriorização de sua personalidade. As mulheres, mais do que tudo as mulheres, nuas, seminuas, de pé, deitadas, sentadas, mas sempre divinamente belas, sempre estão presentes. De vez em quando, a natureza, figurativismo da criação de Deus; outras vezes, as favelas, problemática da criação do homem. A seca, uma preocupação permanente e, dentro da seca, o homem que sofre e espera. As aves geométricas e transparentes superposições. Nelas, a alma diáfana do autor. Aos poucos, a obra de Samuel toma feição pessoal, o estilo aparece com firmeza, o traço se torna inconfundível. O pintor marca definitivamente a sua força, a sua afeição ao aprimoramento constante, o progresso renovador, o sacrifício que enobrece e a vontade que santifica.

Nesta noite, Senhores, desejo ressaltar a minha alegria, a nossa alegria, a alegria de todos. Com esta exposição de SAMUEL DE SOUZA FIGUEIRA, Montes Claros, fica mais rica, mais atuante e mais consciente de seus valores culturais. Estamos todos de parabéns, pois como incentivadores e como críticos deste jovem, temos também a nossa parcela de colaboração, uma vez que a tarefa, quase nunca individual, tem, no ambiente, o essencial e o imprescindível, aquela argamassa social que mantém todas as estruturas vigentes, o fortalecimento da confiança, a projeção da decisão sincera, sem o que, nenhum objetivo pode ser alcançado.

Assim, meu caro SAMUEL, continue a sua missão de embelezar o mundo, engrandecer a sua terra natal. Na sua obra, respirarão os heróis do seu ideal, os santos da sua fé, os apóstolos da sua inspiração e, sobretudo, a grandeza do seu puro e grandioso coração.


SHOPPING-ART, Montes Claros, 7 de maio de 1976.


NO TEMPO DOS CORONÉIS

Yvonne Silveira
Cadeira N. 5
Patrono: Antônio Ferreira Oliveira

 

Inácio pôs a mão em concha, Gabriela firmou o pé e sentou-se no silhão, para o passeio diário a cavalo. Saia longa, rodada e de botas, não aparecia nem um centímetro de pernas, bonitas pernas, ele imaginava. Gabriela instigou o cavalo e partiu.

Da varanda da casa grande o Cel. Janjão Soares observava o ritual, a demora de Inácio em retirar a mão, olhos nos olhos. É... essa história de padre gostar de moça rica é velha, vem de muito tempo... é a tal de plebeu e da princesa, tudo acabando nos conformnes... Mas esta fazendona custou dinheiro e morte dos sitiantes que não queriam vender as terrinhas este cabra mesmo matou uns cinco. Preciso ter cuidado, vigiar. Nada de final bem bom.

Sentado no chão da varanda, Inácio aguardava Gabriela para ajudá-la a descer e tirar os arreios do cavalo.

Bela Gabriela - dizia a si mesmo - porque sou pobre, sou diferente, não posso nem pensar que a senhora também gosta de mim. Mas sou branco, freqüentei escola, antes de chegar aqui, para ser como escravo do coronel, trabalhando sem descanso, até matando, para ganhar tão pouco dinheiro. Se o diabo quiser, dou minha alma em troca de riqueza, para casar com Gabriela.

Não, meu Deus. Loucura de homem apaixonado.

Mas, como posso viver sem a senhora? Só mesmo fazendo a troca com o diabo.

Gabriela regressava do passeio, linda, os cabelos soltos pelo vento, esvoaçando. Sorrindo, o pai disse: - Tudo ocorreu bom de novo, filha, acabam as preocupações.

- Sim, meu pai, o passeio foi bom, fui até perto da Malha da Pitombeira. - Longe, filha, deve estar cansada. Desça e vá descansar.

Preocupações? E se descobrir minha paixão?

Vai fazer de mim o que fez com Zé Manuel. Tremia Inácio ao pensar nas conseqüências, mas embevecia-se, olhando para Gabriela. Insistia, porém a lembrança de Zé Manuel, jogado vivo num panelão de breu fervendo, só porque pôs um filho na barriga de Crioula, filha da melhor cozinheira do coronel. Esconderam, até que o filho nasceu e ele, sabendo de tudo, enfureceu-se, por sentir sua casa desonrada, a casa de homem respeitador, como era julgado pelos vizinhos, que praticavam os mesmos crimes, para se tornarem os grandes senhores coronéis, porém, honrados e dignos entre eles.

- Na minha casa não quero pouca-vergonha, peguem Zé Manuel, quero ver a cara do safado.

Ele chegou com os punhos amarrado, cabisbaixo, tremendo, certo de que o final de sua vida estava perto.

- Então, se atrevido, desonrou minha casa.

- Perdão, coronel, perdão, ele aceitou.

- Você procurou, não tem perdão. Joguem este desavergonhado no breu fervendo.

- Não! Pelo amor de Deus! Não! Não!

- Levem.

E foi levando, já apanhando chicotadas dos jagunços, gritando, pedindo misericórdia.

Inácio presenciara o ocorrido, os gritos de Zé Manuel, pavorosos diminuindo, até se calar.

Foi com a filha da cozinheira, e se souber que eu gosto é de sua filha? Que será de mim?

Tremia e persignava-se. Era supersticioso e acreditava em mula-sem-cabeça, lobisomem, cobra grande e ainda mais no demônio e no inferno.

Mas como casar com Gabriela? Só mesmo o pacto com o diabo, ou o capeta. Rico serei aceito pelo Cel. Janjão. É o modo para ser feliz em vida, depois de morto, não me importo.

Gabriela sabia do amor de Inácio. Olhares, alegria ao vêla, submissão às ordens dadas com brandura e a angustia, o desassossego quando chegava Mateus, feio magro, seu primo, destinado pelo pai, para seu marido, juntando riqueza com riqueza.

Preferia Inácio, bonito e forte, mas jamais poderia imaginar tal união, ou encontrar-se ao menos às escondidas, pois, se descobertos, o castigo seria pior do que foi dado a Zé Manuel. Inconformada, dizia a si mesma: gosto dele, e chorava.

Outro medo de Inácio. O Cel. Janjão tinha um trato, como dizia, com seu parente, o Cel. Pedroso, outro latifundiário, vizinhos separados por cercas de arame.

Por acaso, Inácio ouvia conversa dos dois sobre o tal trato. Os coronéis diziam que se alguém descobrisse o seu segredo "de estado", seria alguém morto. Inácio sofria ainda mais de medo. Mas se eu ficar rico, pensava, nada de empréstimo, para serviço especial. A carta de recomendação, lacrada, terminava com as iniciais E.P.S.P., código de envia para S. Pedro. Por uns dias, o jagunço era bem tratado, trabalho leve, que o intrigava, pois, nada tinha de especial. Chegada sua hora, o coronel mandava-o para S Pedro.

Sempre preocupado com o risco previsto pela paixão de Gabriela e conhecimento do pacto dos coronéis, Inácio continuava trabalhando como escravo.

Certo dia, sentindo a falta de uma vaca prestes a parir, saiu à sua procura, encontrando-a na Malhada das Pitombeiras, à sombra da grande gameleira, sob o qual descansava, depois de muito percorrer os pastos, à procura dos animais.

Encontrou Rosada pastando, enquanto o bezerrinho tentava mamar. Inácio tirou-lhe todo o leite, para evitar a mamite, curou o bezerrinho e... ah, minha amiga gameleira, vou descansar à sua sombra e lembrar de minha deusa Gabriela. Vem, meu amor, vou ficar rico e o coronel vai-me aceitar.

Na fazenda, já noite, Gabriela torcia as mãos, levantavase, o coronel, tranqüilo, fingia nada perceber.

- Senhor, meu pai, mande procurá-lo?

- Por que tanta aflição, minha filha?

- Ele é bom vaqueiro, serviçal...

- Anh, amanhã, antes da madrugada, Sebastião e Joaquim vão atrás dele,

- E matutava...

Descansando, Inácio cochilava, mas não descuidava de Rosada, amarrada em frente, o bezerrinho a mamar.

- Vem Gabriela, vou ficar rico. Vendo, ven-en-do a alma ao diabo, ou ao capeta... ven... do...

Nem tivera tempo de arrepender-se, pois, dando gargalhadas, aproximava-se um fantasma vestindo de presto, com rabo e chifre;

- Venho aceitar o negócio, aqui está o dinheiro.

Emoção fortíssima, medo inenarrável, olhos arregalados, o corpo vai derreando para o lado e com um grito que ecoou pelos campos, Inácio cai, hirto, no chão, à sombra da protetora gameleira.


HOMENAGEM À IRMÃ ROSITA NA CÂMARA DE
MONTES CLAROS

Zoraide Guerra David
Cadeira N. 86
Patrono: Patrício Guerra

Entre as muitas idéias que a imagem do "livro da Vida" pode suscitar, destaca-se a do valor do campo. Todo dia é uma página, todo minuto uma linha em nosso livro.

No reino do passado permanece o que "se passou". (...)
O futuro é para nós ainda incerto, condicional. O presente é a possibilidade da escolha, pois viver é selecionar, a cada momento, dentro da fartura de possibilidades, uma única". Felizmente, escolhi estar aqui. “O destino individual, independentemente de nossa vontade, é-nos permitido por Deus; interpelamos sem que o chamemos.”

Devemos responder, devemos corresponder à expectativa divina, que nos colocou diante de tal ou tal situação, seja como somos honra em nome dos ex-alunos do Colégio Imaculada Conceição de Montes Claros.

Assim, ficaremos em "correspondência", união permanente com Deus, cumprindo a cada momento e em cada nova situação, a sua santa vontade. “É assim que chegaremos à nossa perfeição individual, e é assim que nossa vida se torna cheia de sentido". Entendemos a incumbência desta saudação imposta positiva à expectativa de Deus.* O que escrevemos a cada momento, fica eternamente escrito.

Em assim sendo, nossa alma vibra de alegria, ao saudarlhe porque registra-se neste instante um gesto grandioso que se torna histórico, grafando-se no livro de atas do Legislativo de Montes Claros, o reconhecimento a Clarice Ribeiro Montes - nossa querida Irmã Rosita, concedendo-lhe o título de Insigne Benfeitora, autoria da vereadora Fátima Macedo, aprovado por unanimidade por seus pares através da Resolução número 7 de 26 de fevereiro de 2008.

Irmã Rosita possui um nome ilustre, no jardim da vida, não apenas no Colégio Imaculada Conceição de Montes Claros, como nas ruas e ambientes outros por variados motivos marcando presença, é rosa perfumosa!

Seu sorriso terno e espontâneo reveste-se de uma paz que se torna ímã que nos atrai. Espírito elevado inspira-nos a imitar sua jovialidade.

Sensibilidade é sua tônica, manifesta no gesto pelas artes, com destaque para a música como pianista, acordando outros para a beleza das sinfonias da vida ou ainda incensando nossas orações de louvor na Capela do CIC avalizando o pensamento: "Quem canta, ora duas vezes".

Hildebrando insiste em que "a vida religiosa não tem por encargo abafar, mas desenvolver a capacidade de amar (...) Não há limitação quanto à intensidade ou profundidade do amor que passa sentir a Esposa de Cristo, para com determinadas criaturas”.

Quanto à maneira deste amor, isso sim, pois ela não pode amar senão em Cristo, com Cristo e partindo de Cristo. O verdadeiro amor é amor/amizade. É união entre duas personalidades. Quanto mais coisas conhecemos mais se alargam os nossos horizontes no mundo interior. Amar significa antes de tudo: sair do "jardim fechado" do próprio EU.

É abrir-se para encontrar porta aberta.

A porta principal é o amor.

Quem nunca recebeu amor, não é capaz de enfrentar positivamente a vida, isto é, de dar amor.

Esta reflexão sobre o amor, deixa translúcida a razão desta homenagem.

Montes Claros qual imã luminoso desde o passado, atraia norte-mineiros, baianos ou baianeiros, a ofertar-lhes futuro promissor, permitindo-lhes usar no presente os meios que seriam alicerces confiáveis.

Os pais, sequiosos para ofertarem às suas filhas orientação segura, seqüência do zelo da casa paterna, confiavamnas às Irmãs do Sagrado Coração de Maria, conhecidas por "Irmãs do Colégio Imaculada Conceição" jornada diária, orientada em situações próprias. Capela (silêncio, respeito, oração ou simplesmente louvor e gratidão pela espiritualidade consciente), refeitório (boas maneiras, importância nutritiva dos alimentos, civilidade); pátio (importância do lazer preparava-nos para enfrentar os desafios ensinando-nos a perder e a ganhar através das partidas de esporte); sala de aula (responsabilidade na aprendizagem para um amanhã digno e frutuoso); dormitório
(respeito ao repouso); passeio pelas ruas (interação social, terapia para amainar a saudade tão grande pela falta de meios de comunicação). Benditos portadores que traziam as cartas!

Desta forma, essas Vestais moldavam-nos e consequentemente plantaram em nossas mentes e corações as sementes sadias da gratidão a Deus, à Família e à Escola - meios eficazes para que o homem possa fazer jus à sua característica de essencialmente um ser social.

Não se praticam deveres com tanta edificação e constância, do que quando não se é predestinada para eles.

No Colégio Imaculada não existiam nem pai, nem mãe, nem irmãs biológicos, mas, aqui eles "mestres" que deram o SIM ao chamado de Deus, com sua elegância monástica, orientavam nos seguindo a orientação do esposo Jesus Cristo.

"Amarás ao teu próximo como a ti mesmo." Mt 12.31.

Após essa retrospectiva que justifica ou referenda o Legislativo montes-clarense ao prestar esta homenagem às irmãs do Sagrado Coração de Maria, na pessoa de Irmã Rosita, alertamos carinho somente através desta mensagem.

"Todo o universo é o grande concerto sinfônico em louvor ao Criador, cada homem tem sua voz neste concerto. Contribui com uma nota singular, que só ele pode dar, e mais
ninguém (...), o lugar que eu ocupo é de constelação única; sou pessoa humana, sou única, inconfundível, insubstituível.

Vida tem caráter dinâmico. A graça de Deus também é vida. A graça, esta energia divina, não exerce coação sobre o ser humano. Solicita-o. Ele atende às inspirações do Espírito Santo e desta maneira realiza-se plenamente no seu potencial humano".

Que a partir desta noite memorável em que você Irmã
Rosita, recebe o título de "INSIGNE BENFEITORA", você possa se
sentir recompensada e coroada com as rosas do nosso
amor/gratidão e dizer como São João da Cruz: "Minha única
tarefa doravante é amar". Obrigada pela confiança para o
desempenho desta nobre tarefa.

Montes Claros 25 de abril de 2008.


Querida amiga Zoraide,

Suas lembranças de época do internato no Colégio Imaculada evocadas com saudades, evidenciaram o carinho e gratidão que enche o seu coração de poeta. Ficamos todas emocionadas e eu revendo a baianinha graciosa que é hoje a amiga de todas nós.

Obrigada, querida, pela homenagem que me prestou e sobretudo, pelo afeto que ela demonstrou. Que deus a abençoe, multiplicando seus dons, para alegria nossa, suas amigas e também os seus familiares. Com carinho Irmã Rosita

15.05.2008


UMA CONSTATAÇÃO: O TAIOBEIRENSE
TEM UMA INTELIGÊNCIA ACIMA DA MÉDIA

* Avay Miranda
Sócio Correspondente
Brasília/DF

No livro que escrevi sobre a Historia de Taiobeiras, cujo título é TAIOBEIRAS, SEUS FATOS HISTÓRICOS, fiz uma constatação de que normalmente o taiobeirense é inteligente e, mais ainda, pessoas de boa memória, além de ser aquela cidade dotada de mulheres bonitas.

Quando o livro circulou, este fato causou certa repercussão, porque algumas pessoas não concordaram com aquela afirmação, dizendo que eu queria ressaltar as qualidades de meus conterrâneos.

Abordei na matéria que, quem nasce em Taiobeiras é bastante inteligente, portador de prodigiosa memória e é capaz de narrar fatos acontecidos na antigüidade. Por esta razão, eu não tive muita dificuldade em colecionar os vários fatos históricos narrados no livro, graças às entrevistas que fiz com várias pessoas maiores de 70 anos de idade, já que a história de Taiobeiras até então era registrada apenas na memória do povo, que vinha na tradição, passando de pai para filhos, via oral.

Não é só na memória prodigiosa, ou nos casos contados por seus habitantes, que eu afirmo que as pessoas de Taiobeiras são inteligentes, porque isto acontece com qualquer cidade do interior do Brasil.

Taiobeiras é praticamente isolada. Não sofre influência de Belo Horizonte, porque não recebe, com nitidez, as transmissões de rádio da Capital Mineira. Com o advento da televisão, as emissoras captadas por via de antena parabólica são do Rio de Janeiro e de São Paulo. Belo Horizonte não possui televisão que transmite via satélite. Mesmo Montes Claros, que fica mais próximo, não exerce influência sobre Taiobeiras. A Televisão de Montes Claros, que é captada pelo sistema de retransmissão por sinal, muitas vezes fica sem sua imagem entrar normalmente nos lares taiobeirenses.

Os habitantes da cidade não recebem influência quer de Governador Valadares, Teófilo Otoni, Vitória da Conquista, de Salvador ou de outra cidade qualquer. Tenho afirmado que o taiobeirense possui o seu "mundinho" e sua cultura é típica de lá mesmo, de sua tradição.

Por esta razão, não há explicação plausível para a inteligência do taiobeirense ser acima da média do que se verifica em outras cidades. Várias hipóteses já foram levantadas por curiosos ou estudiosos. Uns dizem que o grau de inteligência do taiobeirense advém do clima frio e agradável de que dispõe a cidade. Outros defendem a hipótese de que o fato de ter o habitante de Taiobeiras uma inteligência acima da média normal de outras cidades é por causa da ingestão de alta dose do pequi e de seus derivados e de outros frutos nativos. Já outros apresentam a explicação sobre a questão, a fatores espirituais, ou extrasensoriais, achando que o taiobeirense é um predestinado pela vontade de um ser superior.

O fato é que serve de admiração a inteligência de pessoas da antiguidade, como Vitoriano Pereira Costa; Candinho do Jacaré; João Mendes Teixeira, alguns de seus descendentes, destacando-se os mais novos, como Trajano Americano Mendes, Amílcar, Martinho e Teófilo (Tezinho) Mendes; Vicente Martinsde Oliveira e seus parentes, Clemente Martins, Januário Martins, Marcelino Martins de Oliveira; Maciel Ferreira Marques, destacando-se alguns de seus descendentes, como Jovita Secundina Rêgo e seus filhos Maciel e Martinho Rêgo; João Mendes Cardoso; João e Teófilo Rêgo; Antonino de Almeida; Arquimedes Moreira; Euclides Moreira (Marotinho); Manoel José do Nascimento (Nenezinho); e outros.

Da mesma forma, alguns que não são descendentes das pessoas relacionadas acima, mas, demonstraram sua inteligência e seu modo de ver as coisas, como José Eustáquio Rocha (Juca Rocha); Osvaldo Lucas Mendes, Joaquim Teixeira, Abel Costa de Araújo, Clemente Costa Araújo, Geraldo Inácio de Sena, Hermínio Miranda Costa, que descobriu sua veia poética após os 80 anos de idade, Isalino Miranda Costa, Geraldo Sarmento de Sena e tantos outros.

Não podendo esquecer as professoras que formaram várias gerações, sem terem saído de Taiobeiras para buscar lá fora a cultura e o saber, como dona Ana Rosa de Freitas (a dona Preta) e Elizabeth Pereira de Souza (dona Betí), que já faleceram, Anísia Matos e várias outras. Todas estas pessoas foram retratadas no meu livro.

Das pessoas que estão vivas, existem várias, especialmente as mais jovens e descendentes das pessoas acima relacionadas, que estão aí a demonstrar no seu trabalho, nas suas atividades, no seu progresso e no modo de criar sua família, o grau de inteligência do taiobeirense.

Maciel Rêgo gostava muito de ler livros interessantes. Leu quase todos os filósofos da antigüidade e tinha uma cultura geral fabulosa. Os moradores de Taiobeiras não tinham muito assunto com ele, por causa de seu elevado grau de cultura. Ele fica à espera de um visitante ilustre para levar aqueles longos bate-papos, uma verdadeira tertúlia literária. Ele gostava muito de dialogar com os taiobeirenses que estudavam fora. Por exemplo, todas as vezes que eu ia passar minhas férias em Taiobeiras, era convidado por Maciel Rêgo para longos diálogos e troca de idéias sobre filosofia, literatura, religião, moral e política.

Manoel José do Nascimento, o "Nenezinho", era muito comunicativo, filho do professor Francisco Costa (Professor Chiquinho Costa). Maciel Rêgo passou a bater papo com ele e tocava naqueles assuntos profundos, como filosofia e história antiga e Nenezinho ficava sem jeito de manter o diálogo à altura, esperado de um filho de um professor daquela época.

Ele ficava encabulado com a cultura geral de seu interlocutor e se achava inferiorizado perante aquele homem. Num determinado dia, ele deixou a vergonha de lado e disse: "seu Maciel, o senhor não saiu daqui para estudar lá fora, onde aprendeu tanta coisa?" Ele respondeu: "Nos livros, meu filho, nos livros". Aí Nenezinho disse, "então me empresta alguns destes livros para eu ter condições de dialogar com o senhor".

Os livros foram emprestados e Nenezinho, que tinha inteligência e memória prodigiosa, passou a ser uma das pessoas cultas de Taiobeiras e batia papo em alto nível com Maciel Rêgo, tornando-se um interlocutor à altura da cultura daquele taiobeirense. Para escrever o livro, Nenezinho foi uma das pessoas entrevistadas por mim, meses antes de sua sentida morte, quando ele narrou este episódio.

Além de ter inteligências, Taiobeiras é pródiga em pessoas bonitas, especialmente as mulheres. No passado tivemos muitas mulheres bonitas. Menas Rêgo, filha de Jovita Rêgo era uma delas, moça bonita e inteligente. Maria e Nininha, filhas de Antonina Rêgo, muito bonitas. As filhas de João Rêgo, como Laury, Janete e Olímpia. As filhas de Maciel, especialmente a Bérites e Eusa, que são muito bonitas. As filhas de Cândido Pinheiro de Azevedo, Marinólia (Doninha) e Jandira (dona Sinhá), para ficar apenas nestas.

Depois da edição do livro, o progresso tecnológico chegou a Taiobeiras, com a integração da cidade a Minas, ao Brasil e ao mundo, por intermédio da televisão, em rede nacional, do telefone interurbano e da Internet. Mas, a constatação perdura o Taiobeirense, geralmente, possui uma inteligência acima do normal. Embora com a globalização dos fatos, ele continua no seu "mundinho", conservando as suas características e preservando a sua cultura.

Tivemos no passado e temos no presente, muitas provas de pessoas que foram vencedoras em diversas atividades da vida cotidiana, quer econômica, profissional ou intelectual.

É comum os estudantes saírem do segundo grau, feito em Taiobeiras, enfrentar um vestibular e ser classificados nos melhores lugares, muitas vezes sem freqüentar os famosos cursinhos.

Com a instalação de cursos superiores na cidade e com a saída dos jovens taiobeirenses para estudarem em outras cidades, esta constatação ficou mais patente, com a quantidade de pessoas que se dispõem a freqüentar aqueles cursos, concluindo-os com eficiência, brilhantismo e ótimo aproveitamento.

Assim, reafirmo que o taiobeirense é possuidor de uma inteligência acima da média normal de outras cidades.

*Avay Miranda é taiobeirense, Juiz aposentado e sócio
correspondente do IHGMC.


HISTÓRIA DA DROGARIA MINAS-BRASIL

Tudo começou pelas mãos firmes e empreendedoras de um homem desbravador, Ivan de Souza Guedes, natural de Bocaiúva /MG, com 5 anos de idade mudou-se de Bocaiúva com o pai, a mãe e 7 irmãs para Jequitaí em um caminhão pau de arara. Alguns anos depois, em um carro de boi, pois ainda não existia estrada, mudou-se para Coração de Jesus juntamente com a família, agora com 10 irmãos.

Conhecidos por sua integridade e visão, os seus pais decidiram mudar-se com os filhos para Montes Claros, para que tivessem um futuro melhor. Assim, Ivan chegou à cidade em 1950, de caminhão com toda a sua família, aos 12 anos de idade, e, desde muito cedo, teve de trabalhar para ajudar o pai, o alfaiate autoditada Nino de Souza Guedes. O seu primeiro emprego foi na Farmácia São José, do Sr. José Dias de Sá (Juca de Chichico), então localizada na Rua Doutor Santos, número 50, onde funciona hoje a matriz do grupo Minas-Brasil.

Como funcionário da farmácia, trabalhava durante todo o dia e, no horário de almoço, bem como depois do expediente, saía na sua bicicleta para aplicar injeções em domicílio, aumentando, assim, o seu modesto orçamento. Todos os anos de estudos foram feitos à noite. Depois de oito anos trabalhando na Farmácia São José, Ivan abriu o seu próprio negócio, estimulado pelo grande amigo Samuel Lessa, que lhe ofereceu gratuitamente 2 um ponto comercial de 40m , na Rua São Francisco, nº 437, por dois anos. Raulemar Couto, amigo e colega do Curso técnico de Contabilidade, entrou com ele nessa sociedade. Assim, em 6 de maio de 1958, nascia a Drogaria Minas-Brasil, no coração da cidade de Montes Claros com apenas dois colaboradores. Após 2 anos, muito agradecido, Ivan entrega o ponto comercial da Rua São Francisco a Samuel Lessa que já estava preparando o ponto para sua filha Eulina Lessa, que havia terminado o Curso de Farmácia , no Rio de Janeiro. Raulemar e Ivan alugam um ponto comercial na Rua Dr. Santos, 14 (atualmente Copasa). Alguns anos depois é desfeita a sociedade com Raulemar, ficando apenas Ivan.

Seu ex-patrão e amigo, Juca de Chichico, ofereceu-lhe o ponto comercial onde ele iniciara a sua profissão. Era enfrentar com coragem mais um grande desafio, comprar o ponto comercial onde tantas vezes limpara o chão onde comprava e vendia, conquistando com o seu carisma a freguesia.

A Drogaria Minas-Brasil, fruto do sonho de um homem de fé, visão de futuro e acima de tudo trabalhador, foi a primeira farmácia a usar o serviço de entrega domiciliar desde a inauguração ele mesmo como um dos entregadores. Em 1962, Ivan casou-se com Maria das Mercês Paixão Guedes, que até hoje, é a administradora do setor financeiro. Era o início de uma história de sucesso...

A TRAJETÓRIA

Acompanhando o desenvolvimento da cidade de Montes Claros, com muita persistência, competência e ética, a Drogaria Minas-Brasil foi gradativamente se expandindo, subindo degrau por degrau a árdua escalada rumo ao sucesso, superando passo a passo as dificuldades e obstáculos que surgiam, sempre com muito esforço, seriedade e respeito aos seus clientes.

TRABALHOS SOCIAIS

Todo início de ano são distribuídos pelo Sr. Ivan de
Souza Guedes, mais de 200 caixas de engraxate para crianças de
rua, dando a elas a oportunidade de cidadania e inclusão social.

Foi feita a doação do terreno onde foi construído o prédio do Pronto Atendimento do Hospital Universitário e também a doação de um terreno na Vila Oliveira para o Projeto Casa Própria, onde foram construídas 18 casas populares. São realizadas também, inúmeras doações a creches, escolas públicas e pastorais além de campanhas que fazem parte do calendário anual da Drogaria Minas – Brasil. São elas:

a. Campanha do agasalho.

b. Campanha Contra a fome.

c. Campanha de combate à hipertensão.

d. Campanha de arrecadação de brinquedos no Natal.

e. Copa Minas Brasil de Futebol Infanto Juvenil, que já está na sua 11ª edição e reúne atletas com idades entre 12 e 16 anos de idade, devidamente matriculados em uma rede de ensino. Mais de 50 atletas estão nas categorias de base e profissionais nas principais equipes do futebol brasileiro e no exterior.

f.. Campanha "Seu Filho na Escola" 1ª a 8ª série – com objetivo de incentivar o estudo dos filhos dos seus colaboradores, distribui anualmente "Kit Escolar" para os que alcançarem média superior a 80. Nessa mesma campanha é realizada uma redação para todos os filhos de colaboradores, sendo as duas melhores redações premiadas com uma bicicleta.

a. distribuição de Kits Escolares aos filhos dos colaboradores que alcançam média anual igual ou superior a 80.

b. Corrida 10KM.

Em 2005, foi fundado o Instituto Ivan Guedes, idealizado por Sr. Ivan de Souza Guedes, que percebeu ao longo de sua vivência como empresário e balconista da Drogaria Minas Brasil, a quantidade crescente de pessoas carentes que o procuravam no balcão da farmácia, solicitando auxílio para aquisição de medicamentos dos mais variados possíveis. Sensibilizado com o infortúnio dessas pessoas, criou o Instituto Ivan Guedes, que atende por mês uma média de 150 pessoas carentes de Montes Claros e região, portadoras de câncer.

MINAS BRASIL HOJE

Atualmente a rede de Drogarias Minas-Brasil tem 13 lojas na cidade de Montes Claros e 1 Centro de Distribuição Interna devendo chegar a 15 lojas até o final de 2008. É primeiro lugar nas pesquisas quanto à preferência pública e reconhecidamente o grupo empresarial que mais gera empregos no comércio de Montes Claros. São mais de 560 colaboradores e a empresa é optante pelo regime de tributação Lucro Real.

A Drogaria Minas-Brasil é o maior contribuinte do comércio varejista de Montes Claros, cumprindo assim, sua responsabilidade social junto à comunidade e seus compromissos legais e tributários.

Atribuímos o sucesso desta expansão aos clientes e toda a equipe de colaboradores que contribuíram para a realização destes importantes 50 anos de história.


MATRIZ (24 horas) - R. Dr. Santos, 50 - Centro.


ÍNDICE

Diretoria do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros - 03
Lista de sócios efetivos do IHGMC- 05
Sócios correspondentes do IHGMC - 07
Notas dos coordenadores da edição - 07
Homenagens - 08
Apresentação da Revista - 09
Antônio Augusto Velloso
- Colonização da Jaíba - 11
Amelina Chaves
- As lendas de Itacambira - 23
Antônio Augusto Pereira Moura
- Montes Claros sob os olhos da arquitetura - Inserção da obra de
Antônio Augusto Barbosa Moura - 27
Dário Teixeira Cotrim
- Padre Adherbal Murta de Almeida - 39
Felicidade Patrocínio
- Restauração da arte de Godofredo Guedes no ano do seu
centenário - 42
Filomena Luciene Cordeiro
Tratamento documental da imprensa Norte- mineira: um resgate da
história e da Memória Regional - relato de experiência inclusiva - 51
Geralda Magela de Sena Almeida e Sousa
- O escritório do meu pai - 65
Gy Reis Gomes Brito
- “Bons velhos tempos” da cidade de Montes Claros - 75
Haroldo Lívio
- O milagre do ouro branco - 95
Itamaury Teles
- Dona Tiburtina: Mulher de fibra, sim senhor! - 99
João Carlos Sobreira
- Hotel São Luiz - O Cristo de Godofredo - 105
Juvenal Caldeira Durães
- Um breve histórico do ensino de Montes Claros
a partir de 1955 - 109
Karla Celene Campos
- Sobrados e Sertões - Memorialismo, regionalismo e nostalgia na
obra de João Valle Maurício - 120
- Gente de Minas - O caso do burrinho da Prefeitura - 126
Lázaro Francisco Sena
- “Montes Claros”, uma hipótese - 131
Luiz de Paula Ferreira
- Luíza Burra - 137
Maria Clara Lage Vieira
- Bocaiúva, gosto mesmo é de você - 143
Maria da Glória Caxito Mameluque
- Dr. Georgino Jorge de Souza, meu mestre, meu patrono - 151
Maria das Mêrces Paixão Guedes
- Paixão por Deus - 157
Maria de Lourdes Chaves
- José Gonçalves de Ulhôa - 161
Maria Inês Silveira Carlos
- Francisco Sá - 165
Maria Luiza Silveira Telles
- O velho Instituto - 171
Miriam Carvalho
- Romance das idéias - 174
Palmyra Santos Oliveira
- José Gonçalves de Oliveira: um líder, um lutador - 187
Petrônio Braz
- A conjuração do São Francisco - 193
- Tradição e Cultura - 197
Roberto Carlos Morais Santiago
- O lendário Anísio Santiago - 200
Roberto Pinto da Fonseca
- 1968 - O ano que mudou nossas vidas - 212
Ruth Tupinambá Graça
- A réplica do Mercado Municípal - 225
Wanderlino Arruda
- Exposição do pintor Samuel de Souza Figueira - 231
Yvonne de Oliveira Silveira
- No tempo dos coronéis - 237
Zoraide Guerra David
- Homenagem à Irmã Rosita na Câmara de Montes Claros - 241
Avay Miranda
- Uma constatação: O taiobeirense tem uma inteligência
acima da média - 245
História da Drogaria Minas-Brasil - 250


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39.400-057 - Montes Claros - MG
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